Pinscher no Escort vinho e outros haibuns
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§ A solidão desse homem seco, soturno, sentando na muretinha da loja de aviamentos (fechada, porque dez da noite), diminui um pouco, nem tanto, na companhia do seu cachorro, que fareja o canto sujo da mesma muretinha. Ambos, homem e cão, preservam imensa semelhança.
cachorro magro
manco, olho esbugalhado
o dono idêntico
§ Um objeto brilhante no asfalto escuro? Pedalo rápido, me aproximo, constato: cocô de cachorro embalado em sacola de supermercado. Mais um dentre vários, o mistério dos cocôs de cachorro embalados em sacolas de supermercado, anônimos, extraviados, pisoteados ou não. Um objeto triste, para lá do limite do ordinário, asqueroso, de história oculta. Há quantos desses espalhados numa cidade de quinhentos mil habitantes?
garoto-propaganda
na estampa da sacola
na merda, sorri
§ Mais um rato (ratazana?) espatifado no piche. Desta vez, com requinte da força do sol, de beleza abrasiva, expressão saturante, excesso de brilho: o animal, esfacelado, reluz na sua carnificina, tripas cintilam sob o astro-rei. Vem mais um carro — grande, sport, conduzido por um sapiens abonado, bem alimentado, em ar-condicionado — e o pneu, tétrico, indiferente, repisa o cadáver: a carne, suculenta, alça e logo e retumba, um pouco mais disforme.
o asfalto ferve —
as vísceras expostas
do rato infeliz
§ Engarrafamento das 18h, quarta-feira, 28°: no assento do passageiro do Escort vinho, um velho manso, barriga avantajada, bombeada pela respiração profunda e, no seu colo, um vira-lata pequenino, puxado a pinscher, ereto, elétrico, que late para a buzina do ônibus.
a nuvem lenta
leve, muda, discrepante
da babel urbana
§ O velho, afundado na cadeira plástica, ofegante, tufo de cabelo a centímetros do seu tênis de corrida, aguarda atendimento na barbearia mequetrefe. Geminada com a barbearia, uma loja de capinhas e assistência técnica para celular: o funcionário, só e entediado, escuta funk. Vizinha do comércio geminado, predominantemente masculino, uma casa de senhora, cor verde-piscina — e um pé de manjericão, vivíssimo, balança ao vento deste fim de tarde, fim de verão, fim do mundo.
cinco da tarde —
som de barbeador, funk
e uma horta alheia
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #73,
Felipe Moreno
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