Pão com azeite, tapioca com jiló, paçoca e parafernálias filosóficas
Pão com azeite, janela, alegria
Depois de seis dias de trabalho, um de folga. Cansaço e preguiça com razão de ser: me deixo levar. Brinco de fazer qualquer coisa. Sem televisão, perdi o hábito de assistir futebol. Mais tarde tem partida de baralho com a companheira. Agora, café da manhã digerido, fome que anseia almoço. Mas não há nada pronto, temos que cozinhar, vai demorar. O ilustre enganar a fome: rasgo um pão com as mãos (ainda fresco, molinho, de ontem à noite). Adiciono azeite e sal no miolo. Abocanho, puxo um pedaço, o sabor da mistura se aguça, me surpreende, produz alegria. Olho o mar pela janela da cozinha. Início da primavera, muitos passarinhos, cantoria que me dá esperança, me faz pensar que a vida, apesar das demolições, ainda vibra. Último pedaço de pão com azeite e sal, meus olhos atravessando a janela: estou onde devo estar. Não há outro lugar. Contente, contente.
Grão-de-bico, Iluminismo, metáfora ruim
Terça-feira, hora da janta: mastigo grão-de-bico enquanto penso que o Iluminismo francês é uma fundação imatura. Seu postulado filosófico tem a natureza de um adolescente: muita energia e ideias, esperança, vontade de transgressão e autonomia. O Iluminismo, afinal, em gesto necessário, deu o golpe efetivo para desgarrar-se do patriarca celestial abraâmico. Três passos à frente (ou três séculos após), por imprudência e alta velocidade, bateu com o automóvel no poste.
Sozinho na mesa, as metáforas surgem ao longo das garfadas. Não me apresso, pois não tenho confiança na qualidade das ideias. Termino a janta e, mesmo desconfiado, venho até o computador para registrá-las. Encerro com outro máxima, ligeiramente distante, que não constou durante a janta: pessoas que ainda desacreditam de quase tudo, não engolem nem digerem nada do imenso catálogo dos mitos, têm coragem de enfrentar sua angústia insolúvel. Pessoas que ainda contemplam as estrelas e perguntam por quê.
Tapioca com jiló, hegelianismo, ilusão dos rumos da história?
Na mesa, sozinho e em silêncio, janto tapioca com jiló e tomate. Janelas abertas à minha frente, noite de verão, visto apenas shorts. O que poderia embotar o sabor da minha janta, interromper este momento íntimo? O assalto filosófico mais duvidoso, burburinho aforismático, frase única com quê de alarde, alarme falso; disparate sucinto e bem arranjado que já não posso deixar passar sem registro. Pensadores hegelianos e a euforia em precisar encontrar o grande paradigma, o signo da era, para, agora sim, catalisar o início do fim da história. Ajustar a grande engrenagem da história, através da fórmula e do cálculo, para fazê-la andar para frente. Mas e se a história, em vez de para frente, estiver indo para os lados, para a diagonal, para vários lados ao mesmo tempo, mas nunca apenas adiante?
Agonia, adoração? Saborear paçoca
Termino de almoçar e corro até a padaria. Volto com quatro paçocas, marca Paçoquita, não exatamente de rolha, forma retangular, dezoito gramas, oitenta centavos cada. Saboreio uma, em pé, na cozinha, e sou incapaz de pensar, me mover, fazer qualquer atividade senão saborear. Até as pálpebras, num movimento inconsciente, tendem a cair: mastigar em silêncio, de olhos fechados. Popular e tradicional, simplíssima: amendoim torrado, açúcar e sal.
Durante a digestão, os pensamentos. Primeiro, uma percepção familiar, aguda e funda, sobre a condição humana: o ser humano é, antes de tudo, uma espécie agônica. Depois, a percepção que nasce da consequência de se pensar nossa agonia primordial: o humano é um ser que adora. Por adorar, recorre ao mito e, não raro, à bala e ao sangue, à bomba e ao morticínio. Aflita e sedenta por crença, flagelada e apologista, ferida e bárbara: eis nossa face antiga, a primeira, talvez, a aparecer após a extrapolação da consciência.
Depois da terceira paçoca, a constatação de que é possível não exatamente se redimir, mas produzir escapes. Arranjo meus próprios escapes, e um deles tem a ver com paçoca. O gesto ordinário de saborear uma paçoca me livra, naquele instante, da condição agônica do ser. Quando saboreio uma paçoca, não tenho qualquer esperança. Há muitos gestos ordinários que nos poupam da agonia e da ânsia, do que há de mal na crença, do fervor às ficções humanas: nação, bandeira, fronteira, identidade. O sabor da paçoca, seu retrogosto pronunciado, me impede de revirar o ego sobre qualquer fábula. Purifica a cena mantendo no instante o que há de essencial: o ar que se respira, o chão em que se sustenta, o corpo que aprecia o amendoim torrado com açúcar e sal.
Abraços e até a farfalhada #4,
Felipe Moreno