Outros fragmentos cariocas
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1. Depois de um ano, volto ao Rio de Janeiro. Agora, mais a passeio, menos a trabalho. Para esbanjar um pouco mais e não exatamente esquecer que o mundo definha — mas que, para além de definhar, o mundo ainda vive, o sol ainda brilha, a praia é a praia, e um estado de alegria elegido, legitimado, provê forças para encarar este mundo em extenuação. Vim para gastar um tanto do dinheiro poupado, e que só posso gastar porque não tenho dívidas nem casa própria, nem trabalho fixo ou filhos. Na minha idade, meus dois avós já eram provedores de seus mundos sólidos, enrijecidos, de labuta e todos os padrões apertados ao corpo, em prol de um futuro de progresso, abundância. Já tinham esposa e filhos, casa e carro, plano de carreira. Eu mal tenho a mim. Comparado a eles, sou frouxidão e despreparo: corro solto como corre o tempo em que vivo — embora, por temor ao desamparo completo, aversão à liquidez total, farejo a base e busco a âncora. No mais, é primavera e vim ao Rio para recarregar as energias da alegria.
2. Corre o táxi em bandeira 2, dez da noite, segunda-feira. O taxista é do tipo clássico, personagem: 67 anos, da gema, surfista das antigas, camisa à moda Agostinho Carrara. Fala de surfe, das mulheres, das praias do seu tempo. Súbito, faz curva acentuada no assunto, muda o tom, a expressão: ouço, enfim, a fake news hedionda, a mais escabrosa das conspirações. Vocifera, sem pudor: “Destruíram Porto Alegre, cara! O PT abriu as comportas da cidade para destruir o Rio Grande do Sul. Sabe por quê? Porque lá o agro é forte. E o PT odeia o agro”. Atônito, alterno entre a mudez e o gaguejo, sem coragem de replicar. O carro amarelo chega no destino, rua Xavier da Silveira, Copacabana; o personagem da extrema-direita sai do personagem taxista-surfista: ele volta a ser gentil, quase meigo, me chama de filho deseja uma linda viagem. Sequer confere o comprovante do pagamento da corrida, que durou doze minutos e me custou cinquenta reais.
3. Vim mais a passeio, menos a trabalho, porém com a escrita à espreita, sempre. Não é ela quem não me larga, sou eu quem não a deixo ir. (É, afinal, uma das minhas três âncoras de vida.) Escrever não é lazer, tampouco trabalho. É uma forma de ascese (um puro exercício), ponto de encontro milimétrico entre esforço e prazer — por isso tão valioso. O prazer vale o esforço, algum esforço leva ao prazer. Meu faro no cangote do texto relâmpago: que meus fragmentos estourem e cintilem enquanto caminho, pedalo, aguardo o ônibus, encaro uma fila. Ou que me peguem desprevenidos, mente oca, mas caderno e lápis na mochila ou na pochete, à medida que as coisas deste abafado, adensado, reluzente Rio de Janeiro, em fluxo, varam meus sentidos; que eu os apanhe com a atenção e minúcia de um ourives dos sinais e do signo, no Leblon ou na Lapa, na Tijuca ou na Glória.
4. O caos concentrado e funcional das velhas ruas de Copacabana: luzes, buzinas, comércios borbulhantes, estridentes; pessoas seminuas à meia-noite de uma segunda feira, gringos mamados de caipirinha, lixos abarrotados de copos de plástico com bagaços de limão. Constelação de chinelos Havaianas que se arrastam pelo calçadão da avenida Atlântica, cachorros sorridentes. Dois estabelecimentos 24h, um colado no outro: um típico fast food estadunidense e uma típica lanchonete brasileira, de mão nordestina. Globalização dos Trópicos, capital do gozo, capitalismo tropical.
5. Mesmo sofrido, precarizado, vulnerável, refém das tecnologias de consumo, o carioca de subúrbio impede que o Rio se torne uma total metrópole distópica: seu molejo, seu sorriso, sua cor são as genuínas defesas contra a mecanização da vida, a proliferação do estado de mera sobrevivência utilitária. A zona sul rica, por sua vez, refuta o slogan da distopia cyberpunk, cujo mote é “alta tecnologia, baixa qualidade de vida”. Aqui, a alta tecnologia (dos celulares, QR codes, sistemas de reconhecimento facial etc.) apenas se acopla, sem deteriorar (por enquanto), a alta qualidade de vida: praia de manhã ao fim do dia, coco gelado, caminhada na orla, bicicletas, botecos, frescobol, futevôlei.
6.
Copacabana —
biscoito Globo, sol a pino
onde me ponho
7. Um vira-lata felicíssimo cujo dono é um velho bon vivant de sunga e pele torrada. Brincam de frisbee no raso, posto 5: ele joga, ela busca e traz; ele pega o disco, ela morde e é alçada pelos dentes. Depois, ele racha um coco contra a areia, deixa ela terminar o serviço: estraçalha o coco o chega à carne. Lambe, se delicia, olhos brilhantes para o dono, que a contempla, mão na cintura, cigarro de filtro vermelho entre os lábios. Uma vira-lata bon vivant.
8. O privilégio das pombas que vivem em Copacabana, Ipanema, Leblon. De fazer inveja nas pombas da Praça da Sé ou da igrejinha de uma cidade interiorana mixuruca. Sobre a placa da avenida Barata Ribeiro, quatro pombas, lado a lado, repousam e sentem o frescor do chuvisco, após cinco dias seguidos de sol e calor.
9.
primavera adentro
chove no Rio de Janeiro —
bem-te-vi na pedra
10. Por sobrecarga, cansaço, em qualquer lugar do mundo o sedentarismo recairia, brutal, sobre o pai de uma criança de colo, responsável pelos cuidados durante, no máximo, meio período — menos no Rio de Janeiro. Culto ao corpo, à saúde, fissura por atividade física: um homem corre na ciclovia do calçadão de Copacabana, camisa de Seleção Brasileira, celular com cronômetro numa mão e, na outra, a alça do carrinho de bebê, que vai à frente, veloz, o filho dentro, dormindo.
11. Todo cara jovem ou de meia-idade da zona sul carioca, abastado, seja ele pai ou sem filhos, casado, solteiro, todo playboy da zona sul do Rio é um protótipo de deus Apolo, de chinelos e sunga.
12. Senhor aposentado (engenheiro, professor, militar? Quinze, vinte, trinta mil de renda?), latão de Brahma, sentado sobre a camiseta regata estendida na areia fofa. Olhos espremidos sob a aba do boné do Botafogo, olhos para o mar e nada mais.
13. As árvores do Parque Lage, centenárias, milenares (?), jaqueiras que cospem suas jacas graúdas. Árvores: esplendor da matéria. Assim como as praias e suas linhas ao infinito horizonte azul, encontro de céu e água: esplendor da matéria. Nas praias espalhadas pela Baía de Guanabara (seio do mar), cinco da tarde, as gaivotas congraçam sobre a cabeça dos moleques que jogam altinha, esguios, habilidosos, à beira d’água. Com vento que seca o suor da testa, a tarde termina em vermelho e lilás.
14.
primavera carioca —
o porteiro e a orquídea
na mesma calçada
15. Hedonismo moderado no meu corpo bronzeado. Esticado na areia quente, rente ao mar, no meio de gente, cães, abaixo de gaivotas. Preciso ter a dignidade de assumir meus prazeres, vivê-los, suspender a angústia maior: já é duro demais enfrentar este mundo, este tempo — não vou endurecer junto. Vou produzir fibras, sem enrijecer; ao sabor do ferro, vou exercitar a valentia, sem embrutecer. Quando puder, quero ser apenas aquela cena, naquele samba do Bip Bip (boteco que parece uma caixinha de fósforo), noite de bossa nova, a roda cantando, em meiguice e deleite, Dindi, versão de Tom Jobim: “Se soubesses o bem que te quero...”. Salto à alegria, queda no colo da ternura, retinas vertidas na inocência. A alegria vale o esforço; preciso de muito pouco.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #87,
Felipe Moreno
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