Obsolescência programada: crime velado?
▣ Existe consenso e debate acerca da obsolescência programada dos objetos industriais, sobretudo eletrônicos e digitais. No entanto, deveria ser imperativo popular, coro entoado para todos os cantos, em voz grave, a reivindicação por dispositivos digitais com vida útil dez vezes maior, no mínimo, que os atualmente fabricados. Em suma, celulares e computadores que durem quarenta anos. E sem conformismo, mas ambição de largo alcance, imaginando ser possível usufruir de dispositivos com cem, duzentos anos de vida útil, dispositivos a serem herdados por filhos e netos.
O quão absurda e desprezível é a lógica dessa economia que permite que um reles par de meia tenha mais durabilidade que um sofisticado e dispendioso smartphone, que demanda cerca de 300 quilos de matéria-prima até chegar às mãos do consumidor? Se, num mesmo dia, você comprar um par de meias e um celular novos, depois de cinco anos, provavelmente, seu par de meias ainda estará na gaveta; no entanto, por razões que transitam entre acidentes, obsolescência programada e consumismo, você estará com outro aparelho, mais moderno, atualizado — e o anterior em algum destino desconhecido: nas mãos de uma outra pessoa da sua cidade, de menor poder aquisitivo que você, ou ainda em algum cemitério de eletrônicos em Gana.
O silício, matéria-prima basal à indústria da tecnologia, exige extração agressiva e hostil. Sua prática, que ocorre num mercado escuso, repleto de denúncias, acumula um histórico de crise, por razão óbvia: já existe escassez de silício no globo. A tão superestimada internet das coisas deve, daqui para frente, abocanhar mais quantas toneladas de matéria-prima para fazer com que um simples espelho se torne um dispositivo inteligente?
Esse modelo de extração, produção, consumo e descarte escancara a verdade de que as grandes companhias de tecnologia não são aliadas contra o colapso ecológico, mas contribuintes ao seu agravamento. Dois exemplos alarmantes, para que o absurdo, há tempos normalizado, não se infle ainda mais: de 2007 para cá, a Apple lançou 34 modelos de Iphone. No Brasil, há mais aparelhos celulares do que gente.
▣ A obsolescência programada em aparelhos domésticos e dispositivos digitais é o sorrateiro crime que poderosos cometem sobre as massas consumidoras e, ainda mais grave, sobre os bens da terra. Todo objeto tecnológico, que arrancou quilos e quilos de matéria-prima (minerais escassos, sobretudo) para ser fabricado, e tornou-se inutilizável em cinco anos, incrementa a gigantesca dívida ecológica; aprofunda, dose a dose, a perturbação do funcionamento harmônico do globo. Antropoceno high-tech: enquanto as aves e os primatas, após milhares de anos de estabilidade biológica, desaparecem numa velocidade atroz, aglomeram-se pelos continentes, em mesmo ritmo, carcaças de micro-ondas e notebooks.
▣ A garota, distraída, senta-se no vaso e não vê seu celular escorregar para o fundo da água. Dois dias depois, em doze vezes no cartão, compra outro. Oito meses à frente, perde mais este aparelho. Passado um ano, troca por um outro, agora por vontade própria: o atual já estava acabado, tela rachada, e, principalmente, muito desatualizado. Menos de dois anos, três celulares diferentes. Não há nada, dentre todos os seus pertences, que foi substituído tantas vezes. As calças jeans seguem as mesmas, há sete anos. O armário da cozinha. A mesa de jantar. O carro. Até o namorado. No entanto, os celulares, retângulos de ultracondensação de matéria finita, seguem a dinâmica da fragilidade e rotatividade. Quase mil quilos de matéria-prima em menos de dois anos, cristalizados nesse objeto que já não se vive mais dois dias sem.
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Felipe Moreno
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