O zen e a arte de pedalar
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1. Andar de bicicleta é uma das melhores coisas do mundo. A bicicleta está entre as dez mais sofisticadas invenções da nossa espécie. Há poucas sensações na vida tão agradáveis e gratificantes quanto descer, sobre duas rodas, uma ladeira em tarde de verão, sem freio, as pernas repousadas, pouca roupa, pele contra o vento. Depois a parada, e o caldo de cana com limão na garrafa de 500 ml.
2. Após dois meses de pausa, por causa da câmara estourada do pneu dianteiro e pela falta de tempo para trocá-lo, retorno, finalmente, às pedaladas. Segunda-feira, fim de tarde, 32 graus em Florianópolis. Decido ir ao karatê com a magrela. Na descida do morro do José Mendes, entre o Centro e o Saco dos Limões, os olhos se chocam, em velocidade, com as águas azuis, estonteantes, da baía da Ilha. Rua vazia, asfalto liso, bicicleta em plena atividade. Não sei se rio ou se choro.
3. Tenho uma speed, estilo Caloi 10, aquelas dos anos 70 e 80. Mas não é uma Caloi 10, é uma Carlton Flyer, fabricação inglesa dos anos 70(?), quadro de ferro, leve, maravilhosa. Um achado de OLX, em 2019. O anunciante, desinteressado, pediu R$ 450,00. Fui buscá-la num domingo à noite, na febre de quem recebe um chamado do além. Xodó, minha speed vermelha é uma das minhas maiores vaidades.
4. Murilo tem 59 anos, natural de Recife (PE), morador da Ilha de Santa Catarina há quase trinta anos. Magro e ágil, compartilha semelhanças físicas com sua bicicleta speed, uma Monark 10 preta, com muitas peças originais, inclusive o guidão drop. Avisto Murilo pela primeira vez no sacolão, onde, na entrada, ele prende a bicicleta e, ao lado, deixa suas duas vira-latas, que lhe esperam sem qualquer euforia ou dissabor. Murilo volta, desprende a bicicleta, dá sinal às cachorras, e os três seguem rumo: ele pedalando, devagar, as duas trotando, bem rentes aos pneus, línguas para fora. Depois, conheço Murilo na porta do mercadinho, cada um com sua magrela. Imersos num papo sobre bicicletas e pedalar, ele, espontâneo e efusivo, desabafa: “Não tem coisa melhor. Quando estou naquelas descidas, me inclino. E vou, vou. Sinto cada parte do meu corpo, a adrenalina. Melhor maneira de se sentir vivo”.
5. O carro é uma utilidade inconveniente, um facilitador nauseante. Agiliza a minha vida, poupa minha energia e tempo, a medida que empobrece minha paisagem, obstrui meus sentidos e, em ocasiões radicais, me faz vomitar. Um ano andando de carro com frequência e, quando percebi, havia adquirido trejeitos burgueses. O carro é o santuário do burguês urbano. Desde criança, irremediavelmente, andar de carro me causa enjoo e, quando a estrada é tortuosa, cheia de curvas, me dá crises de vômito. Como se meu corpo reagisse com escândalo à sua incapacidade de assimilar a possibilidade de se mover a 60 ou 80 km por hora enquanto está parado, sentado num banco.
6. A palavra, signo quase etéreo, só pode vir do vento, de um tipo específico de vento, nem por isso incomum. Todo pensar e todo escrever desponta a partir da fusão de determinado estado físico e mental com determinado tipo de ambiente e sua temperatura, luminosidade e, principalmente, corrente de ar. Parado escrevo pouco, com esforço: parado não há vento. Ao caminhar, arejo o léxico, cataliso o pensar: a escrita desabrocha, espaçada e devagar. Ao pedalar, o mapa da escrita se expande e acende, com mais intensidade e em acordo com minha tipologia fragmentária: as frases pipocam, explodem a medida que o vento toca a pele e os olhos gravam as cenas da cidade.
7. Há algo de extraordinário no fato de ser fisicamente possível um primata bípede se equilibrar sobre um arranjo de metal e dois finos pneus de borracha. Essa evidência física, intrínseca, pouco relembrada, é, por si só, uma poesia, uma magia, um milagre. Se exercitarmos nossos olhos à contemplação de uma pessoa andando de bicicleta, como se aquela cena não fosse familiar, não fosse uma cena gasta, viciada, mas como se fosse vista pela primeira vez, então, talvez, houvesse o espanto: um primata bípede, em velocidade e equilíbrio, sobre um arranjo de metal e dois finos pneus de borracha é algo extraordinário, uma poesia, uma magia, um milagre.
8. Marshall McLuhan, pensador canadense, fala sobre os meios de comunicação como extensões do nosso corpo, como se o que criamos como técnica é uma espécie de continuidade dos nossos órgãos. Uma caneta é a extensão dos nossos dedos. Uma caneca é a extensão das nossas mãos. Uma cadeira é a extensão das nossas pernas e colunas. Se não me engano, McLuhan exemplifica a bicicleta como extensão dos nossos pés. Neste caso, me parece pouco. Conforme a lógica, a bicicleta parece ser muito mais: é a extensão exuberante, a um só tempo delicada e firme, de todo o complexo de funções motoras do ser humano. É a extensão da arte de caminhar.
9. O protagonista do filme Fé corrompida (Paul Schrader, 2018) é Ernst Toller, reverendo de uma igreja luterana e homem alcoólatra. À noite, na solidão do seu quatro austero, ele escreve um diário. Os textos do diário de Toller são também seu monólogo interior. A certa altura, ao andar de bicicleta, Toller reflete: “Mary e eu seguimos a trilha do parque. Eu não andava de bicicleta há uns vinte anos. Eu estava com medo de cair. É incrível o simples poder curativo do exercício. É uma dádiva de Deus”.
10. Eis a subida logo à frente. Pedalo, lento e em pé, enquanto passo as marchas — uma, duas, três, o barulho do passador —, a fim de chegar na mais leve. Pedalo, pesado, cada rotação mais pesada, e subo, subo, subo, todo o corpo trabalhando, pés, panturrilhas, joelhos, coxas, abdômen, mãos, braços, ombros, mente, respiração (inspiro pelo nariz, curto, exalo pela boca, longo). Chego no topo, o corpo candente, pulsante, vivíssimo.
11. Eis a descida. E a descida é a recompensa do esforço da subida, a queda livre, ao passo que estável e controlada. O vento, a leveza, a alegria. Na descida, sinto a gratidão numa dimensão que não consigo acessar através de outras experiências cotidianas — senão de bicicleta, na descida, após a força e o suor despendidos na subida. Aos bitolados da objetividade, é uma gratidão bioquímica, e não há do que duvidar. Além de bioquímica, porém, é mais o quê? Gratidão ampla e vazia de recompensa, barganha, egocentrismo: a pura gratidão de estar vivo, imerso e ativo — com vento, leveza, alegria — no processo do insolúvel mistério de viver. Gratidão enquanto desço e a paisagem passa, me entrecorta. Uma gratidão colada à experiência da contemplação, afinal. Agradeço porque vejo. Vejo e agradeço. A bicicleta é o veículo.
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Abraços e até a farfalhada #44,
Felipe Moreno