O zen e a arte da apreciar paçocas
1. Nenhum devaneio encantado ou assombro metafísico pode me arrancar do momento em que saboreio uma paçoca. Quando o perfeito casamento entre o amendoim torrado, o açúcar e a pitada de sal toca o paladar, toda verborragia mental é ceifada pela raiz. Aqui, eu e paçoca somos um.
2. Embora apreciá-la, somente apreciá-la, seja o essencial, sinto que preciso conhecer sua história, suas origens. Além de apaixonado e grande consumidor, preciso me tornar um teórico da paçoca. Uma atuação que envolve gastronomia, cultura e literatura. Tal empreitada renderia uma tese de mestrado.
3. Ganhei um processador e descobri que é possível fazer paçoca em casa. A princípio, a paçoca caseira me proporciona mais liberdade, autonomia, redução de custos e também de consumo de embalagens plásticas. Depois de um ou dois testes, no entanto, descobri que não é a mesma coisa: a indústria, maquinário de milagres, é imbatível. A Santa Helena, que produz a Paçoquita, sobretudo. E o mais intrigante: uma paçoca industrial normalmente não tem mais ingredientes do que a que se faz em casa: amendoim torrado, açúcar e sal. Com certeza é um dos produtos da indústria alimentícia mais simples de todos. Sem mais glicose, xarope, corante e afins. Apenas três ingredientes. O que me deixa aliviado, com menos peso na consciência.
4. As embalagens amarelas das principais marcas de paçoca me seduzem esteticamente. Já pensei em fazer coleção. Senso comum: amarelo é a cor que estimula o apetite. Minha sedução, porém, vai além: o amarelo das embalagens de paçoca tem um quê de Brasil profundo, como expressão em miniatura da nossa cultura. Paçoca é Macunaíma, Guarani, Minas Gerais. Paçoca é Ariano Suassuna, Mata Atlântica, botecos de esquina, festa junina. Ninguém imagina a existência de uma paçoca, rolha ou retangular, 18g, embalagem amarela, cujo mascote é um amendoim sorrindo, produzido na Suécia ou no Canadá. Paçoca, por fatores climáticos e culturais, é sul global.
5. A paçoca em formato retangular não é de todo ruim. Ainda assim, é uma transgressão questionável ao formato clássico de rolha — este, melhor em tudo. O formato da paçoca de rolha é tão perfeito que, numa excepcional sinestesia, influi na qualidade do próprio sabor.
6. O amendoim é um alimento muito oleoso. Por isso, quando como muitas paçocas, meu único efeito colateral é o aumento de cravos e espinhas no rosto. Assumo a consequência sem mínimo pesar: aqui, o prazer prevalece à aparência.
7. Quando como paçoca, devo parar tudo que estou fazendo. Se estava falando, me calo. Se estava andando, estaco. Se estava pensando, afasto os pensamentos. Pedaço a pedaço, em lentas mastigadas, apenas saboreio — às vezes com os olhos fechados. Suprassumo da realidade sensível, vivenciar este momento é uma espécie de transcendência na plena imanência.
8. O zen, que me ensina a sentar e meditar — não sem esforço e dor —, termina por me ensinar a vivenciar o tempo em seu momento de ser, as coisas do jeito que são. Sem a prática zen, eu jamais descobriria o valor real e profundo da apreciação de uma paçoca. O zen, além de outras coisas simples, me ensina a melhor apreciar paçocas.
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Abraços e até a farfalhada #24,
Felipe Moreno