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October 20, 2025

O ó tão superestimado pensamento europeu

§ Indagado por um monge sobre o que é Buda, um mestre zen chinês, do século 9, responde: “Um pedaço de papel higiênico usado”. De Descartes a Sartre e, até mesmo, de Heidegger a Derrida, quem, na filosofia ocidental, poderia captar o sentido total dessa desconcertante, irreverente, absurda resposta?


§ Do que se transformou a filosofia, o que ela transforma? Matéria que amo (também a fetichizo), mas a ataco: posso entender sua abstração, seu hermetismo, seu complexo jogo de terminologias, o requinte dos seus conceitos, mas não posso entender porque ainda há tão pouco ceticismo, entre os próprios pensadores, sobre os rumos que a filosofia tomou. No fundo, não há, rigorosamente, diferença de valor entre o filósofo versado na metafísica aristotélica e o encanador perito em tubulação e sifão. (Ainda que ressoe a questão: quem, na vida prática, é mais demandado?) A depender da perspectiva, ambos os conhecimentos são, simplesmente, valiosos ou inúteis. Um colega se gaba sobre a densidade da sua compreensão a respeito dos imperativos categóricos de Kant — mas o quanto essa compreensão está atrelada ao seu modo de vida, aos seus exercícios; quanto aciona as fibras do seu corpo? Sim, a filosofia: não raro, tralha teórica para uso verborrágico dos neuróticos.


§ A filosofia que outros povos (indígenas, orientais) acessam e transmitem, por meio de experiências integrais ou extracognitivas (sonho, transe, medicinas, meditações, acrobacias psicofísicas), os europeus (à exceção dos gregos e dos místicos cristãos), a elaboram pela exclusiva ruminação intelectual — uma experiência restrita, para não dizer menor. Por isso, no geral, a cátedra ocidental tem a característica de uma abstração farsante. Frequentemente, a erudição dos seus conceitos e a pompa da sua linguagem camuflam a insipidez dos seus fundamentos.


§ Fui estudar as filosofias do Oriente, budismo, taoismo. Percebi que o pensamento europeu é inferior não porque suas sabedorias são aquém às demais, mas porque é um pensamento bitolado, ensimesmado, fechado em seu curral, uma parafernália teórica que gira em torno apenas das próprias proposições. Sem novidade. O que esperar de um povo que a tudo invadiu, exterminou e subjugou? Um povo que, comparado aos demais, se manteve cego aos horizontes do aprendizado, da troca, das influências externas. Tomado por uma febre demoníaca, só soube dar curso, na materialidade e nos saberes, à apropriação canalha, ao roubo descarado, à soberba. Uma civilização que produziu Kant e Hegel é superestimada em relação àquelas que produziram Confúcio e Zhuang Zhou.


§ O gênio das ciências europeu, clássico perturbado, é a miniatura viva da cosmovisão do seu povo.


§ A filosofia quase não se prolifera, não se mistura, não areja: hipertrofia-se na sua própria clausura de códigos. Passou da hora de ser considerada digna de recusa, motivo de chacota, a filosofia à moda da cátedra ocidental: pedante, sisuda, cifrada. A mais abstrata teoria deveria estar submetida à forma da pura literatura.


§ Infâmia: num departamento de filosofia, todos leram Hegel (ou fingiram que leram), mas quase ninguém jamais entrou em contato com Nagarjuna (filósofo indiano). No entanto, não deveria soar estranha a forte impressão daqueles que, pelo caminho inverso, primeiro acessaram Nagarjuna, depois Hegel: o filósofo alemão, em comparação ao indiano, ainda engatinha de quatro e tateia no escuro.


§ Feito vagabundo, transito bem entre muitas correntes, escolas, linhas de pensamento, sem pouso, porém, sem empoçar a voz. Assim me coloco, talvez, por irremediável sintoma da modernidade tardia, a liquidez geral; mas há outro aspecto: meu descompromisso com o valor do pensamento, minha descontração frente ao monumento da intelectualidade se deve, principalmente, à intuição latente, incontornável, de que o valor do pensamento e do monumento da intelectualidade ocidentais, justamente, são um império quase tosco de grandiloquência, uma hegemonia construída à base da violência, não da sofisticação da sua sabedoria, uma superestimação que pouquíssimos têm coragem de acusar. (Um dia um sambista, de uma refinada sabedoria popular, me disse que todo intelectual francês, só por ser francês, já nasce doutor.)


§ Quantos professores universitários, das áreas de humanidades, não passam a vida como máquinas de citação de nomes europeus? Dentro da academia, somos todos, de alguma forma, tributários ferrenhos aos clãs franceses e alemães. A morte de deus, nos espaços da secularidade intelectualizada, cedeu lugar a Kant, Hegel e, mais contemporaneamente, Nietzsche, Benjamin, Foucault, Deleuze. Há doutores que falam de Nietzsche como se este fosse uma divindade; outros que ainda evocam Hegel com uma gravidade religiosa. Louco, disparatado, é quem ousa tirar sarro dessas figuras, quem tem a audácia de se colocar em alguma igualdade com esses homens. Mas e hoje? A intelectualidade francesa e alemã fala nossa língua, nos cita, se baseia e se inspira em nós, sem qualquer traço de exotismo? Surgirá, um dia, nas nossas universidades, uma miríade de pensadores e pensadoras (indígenas, quilombolas, brasileiros) que não estarão aportados por nenhum catedrático francês, nenhum anglo-saxão?


§ Não importa quanto tempo passe, o quanto aprenda sobre outras culturas, artistas, estilos: ainda acho, e devo sempre achar, Cartola, o sambista, o homem mais elegante, mais terno que pude enxergar. Um lorde inglês do período vitoriano, ao lado do Cartola, é um sujeito chinfrim — cafona. Cartola é o suprassumo de um prumo integral: da forma que se veste, que anda, se senta, pousa para as fotos, olha, canta.


A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.


Abraços e até a farfalhada #108,
Felipe Moreno

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