§ Sobre os paralelepípedos centenários, o mesmo hare krishna, cabeça raspada, manto laranja, pilha de Bhagavad Gita nos braços, crocs nos pés. Olhos baixos, serenos, ele vaga, rodopia, aborda, ninguém para. A maioria sabe o que o rapaz tem a contar. São cantos de outra aurora, mística de outro tom: a mulher, quase senhora, católica, cruz de bijuteria sob o casaquinho (única a corresponder ao chamado), logo torce o rosto, dá risada esquisita, entre o deboche e o nervosismo, e escapa. Ainda assim, o hare krishna do centro mantém compromisso, parece nunca desanimar. O hare krishna do Centro — que já foi motoboy, depois cantor de rap, depois hippie — tem todo o tempo do mundo.
entre a luz de Krishna
e a paz de Cristo
a loja de utensílios
§ Fim de expediente, na rua cumprida, uma dupla aqui, outra ali, mais uma acolá, cada uma fumando seu baseado. Trabalhadores pobres, pretos e pardos. O cheiro da erva queimando, a puxada forte, quase um assobio — faminto pelo baque e pelo efeito — na ponta úmida do cigarro sem filtro ou piteira.
bola e olha
para frente, atento, puxa
passa e solta
mato prensado
em papel filme rasgado —
marofa na mochila
§ O boteco, o velho; a sombra do boteco vazio sobre o velho em solidão. Copo americano com líquido verde: pinga com limão? O relógio não alcançou as onze da manhã. O velho, calça branca de alfaiataria, mocassim branco, encobre o copo com a mão direita, que ali fica, sem sinal de impulso ou de largar. Os dedos estáticos revestindo o copinho suado. Um anel de bijuteria para cada dedo. Tosse carregada, ardida. Não leva a mão à boca, não larga o copo.
suspiro etílico
mocassim, bijuteria
velho em solidão
§ A colossal saga dos pássaros na vida de concreto. A colossal capacidade de adaptação, resiliência.
bioconstrução
do João-de-barro
no vão do semáforo
§ Porque nunca considerei o suicídio, a vida valeu. Porque, sem pudor, às duas da tarde, enfiei o nariz, fechei os olhos e aspirei a flor de jasmim daquele pé carregado, em frente à padaria, na calçada da avenida, tudo valeu.
mesmo em meio
a fumaça e ruído
o perfume doce
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #52
Felipe Moreno
