O gosto pela aspereza
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“Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze.” — Graciliano Ramos, Memórias do cárcere
1. Exigentes das nossas liberdades supostamente tomadas, mas sem entender onde residem nossas renúncias, não estariam as esquerdas brancas, de classe média, encurraladas nesse ponto de captura perfeito ao capital? Daí nossa paralisia? Uma letargia do prazer incessante, uma drenagem da força via supremacia hedonista? Pois é estranho, no mínimo, tais esquerdas, ainda embaladas no sono agradável de maio de 68 — sem perceberem que é um sono cooptado, nichado, gerido pelo mercado, logo produtor de novas demandas de consumo — estarem tão aferradas à busca por garantias materiais e liberdades performáticas e, como compensação, sequer questionarem os limites dos seus princípios de prazer. (As liberações das potências tornaram-se gritos por atendimento das satisfações no balcão do consumidor.) Abandonamos, por exaustão, qualquer princípio de sacrifício, mesmo os mais cotidianos, micropolíticos, produtores de sentido; o boicote saiu de moda, o low profile é cringe. Só buscamos a rápida e pobre satisfação sensorial em compensação do desprazer compulsório provocado pelo superaquecimento geral do mundo — superaquecimento da atmosfera, das relações, dos neurônios, espécie de burnout universal. Mas a causa da nossa exaustão e paralisia é, de fato, a nossa depressão pelo fim do mundo ou, no fundo, a forma como estão deformando, adoecendo, a dinâmica da nossa relação entre prazer e desprazer?
2. A hemorragia neoliberal, que suga a vitalidade e prostra a força de reação, nos mantêm num estado de letargia dos prazeres grosseiros, paralisia pelo excesso de permissividade, espécie de catatonia hedônica. Penso numa nova forma de ascese, tática e ética, que se impõe, sim, como inibição, privação, ceifamento, tudo de forma parcial, pois, como efeito, não quer abolir o prazer: verte a pulsão do prazer para um canal mais seguro, suave, contemplativo e, principalmente, complexo, porque passa a abarcar — e a sintetizar — estados de prazer provenientes tanto do conforto quanto do desconforto, do relaxamento e do esforço. Chamemos esse modo de semiascético, pelo seu caráter mais flexível que as tradicionais práticas ascéticas, mas que é, no entanto, castrador de boa parte do cardápio de prazeres fáceis e agressivos implantados pela cultura neoliberal. Aí está o ponto: essa semiascese é, além do mais, o gosto pela aspereza, a saborosidade pelo que também é amargo, o deleite também pela secura.
3. No jorro neoliberal, permissivo e fervilhante, em que tudo se encerra numa explosão de prazeres fugazes e consequente depressão, o lugar comum é ser e se relacionar com gente propensa ao hedonismo majoritário: flutuamos, quase todos, em mimos autoinduzidos e frouxidão psicofísica. Quero saber onde estão as pessoas que, com sangue e suor despendidos, porém serenas, sem traços de fanatismo ou delírio espartano, megalomania ou extrapolação narcísica, foram capazes de assimilar, nos ossos dos seus modos de vida, alguma forma de ascese: disseram não ao que seduz de imediato e sim ao que incomoda de início, conscientes, a longo prazo, da danação do primeiro e da fortuna do segundo.
4. Sempre nocivo, o excesso de conforto, para diferentes povos dos períodos pré-capitalistas, gerava uma espécie de culpa. A soma de facilidade com imediata comodidade era vista com desconfiança, às vezes tabu, peso nas consciências. O capitalismo fez o bem de minar a culpa, mas o mal de fabricar a necessidade do excesso de conforto: fez da letargia um propósito e um vício.
5. Quando alguma renúncia sexual e uma dieta restritiva tornam-se práticas e éticas anticapitalistas, o cativeiro de onde o capital opera seus domínios é localizado: um centro produtor de desejos vorazes, de infinitos sins, infinitos “você merece”, “se permita”; um cativeiro que se releva um castelo da nossa atual ordem explosivamente hedonista.
6. Por volta de 2010, numa conferência de big techs e startups, um palestrante bilionário fez o terrível apontamento: se os empresários, ali presentes, quisessem se tornar bilionários do dia para a noite, deveriam desenvolver aplicativos que fossem capazes substituir nossas mães — quer dizer, o papel de gênero atribuído, nas sociedades patriarcais e capitalistas do Ocidente, às mulheres com filhos. O apontamento foi profético. De lá para cá, vimos o surgimento tiranizante do esteriótipo da mãe superprotetora (a mãe que só mima e nunca castra), cujo serviço o tecnocapital capilarizou às massas de empregados precarizados. iFood: a mãe que nos leva comida na mesa. Uber: a mãe que nos leva aos compromissos. Instagram: a mãe que bajula nossos projetos e entretenimentos.
7. Autoinduzido e satisfatório, um estado de vida semiascético (em comparação ao extravagante padrão hedonista de hoje), é, em primeiro lugar, a chance de antecipação à austeridade material, compulsória, logo indesejada, que a catástrofe ecológica deve gerar.
8. Lição extraída no momento em que estou achagado em frente à cama, dobrando roupas, o corpo equilibrado sobre a ponta dos pés, os calcanhares suspensos (posição de koshi, no karatê): se não apelarmos, minimamente, às atividades duras; se não impulsionarmos, diariamente, alguns exercícios de desconforto, a prostração e a debilidade se farão tão regra que o corpo se tornará um outro desconhecido, não correspondente, ente da dissociação.
9. Aderir à aspereza, sem escapismo.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #74,
Felipe Moreno
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