O espirro e a questão de classe
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1. Sim, este texto é sobre espirro, “expulsão reflexa, brusca e sonora do ar pelo nariz e pela boca, provocada pela irritação da mucosa nasal”, segundo o dicionário. Sobre o espirro em seus recortes de classe; mais especificamente, o contraste das características dos espirros da população de classe média de apartamento com a população suburbana que vive em casas. Um registo cartográfico pelo ângulo da mais pura trivialidade, e que funde fisiologia e sociologia, bioquímica e materialidade, cacofonia e propriedade privada.
2. Em mais de vinte anos morando em apartamentos, não me lembro de ter qualquer reação, seja de susto ou de graça, diante do efeito dos espirros dos meus vizinhos. Não havia reação porque eu mal os escutava; escutava e passava batido. Hoje, ao viver em casa de subúrbio, rodeado de velhos e velhas suburbanas, sou atravessado, de hora em hora, pelo tremor e sonoridade escalafobética dos espirros dos meus vizinhos. São constantes, sim, e vindos de diferentes casas. Embora tenham em comum a exacerbação, o volume alto, tratam-se de espirros originais, uma marca registrada de cada um. Depois de meses apurando o ouvido com os espirros alheios, já sou capaz de associar o espirro à pessoa.
3. Já não posso acreditar que minha impressão seja um delírio banal, pois vivi e ouvi: a classe média espirra em mesma quantidade que as classes mais baixas — ou até mais, devido ao acúmulo de poeira em ambientes pequenos e pouco arejados; e porque a rinite parece ser uma condição crônica que acomete, em maioria, a própria classe média. Espirra igual ou até mais que as classes mais baixas, porém espirra com pudor, contido, sem som e sem graça. Seria o caso de uma autorrepressão imposta pelos costumes recatados, pela ditadura da etiqueta que a classe média tradicional tanto insiste em perseguir?
4. Por sua vez, o subúrbio ainda espirra alto, em sequência de cinco, seis, sete. São espirros estridentes, teatrais, exacerbados, sem pudor. E, como disse, todos originais. Dona Bahia, por exemplo, tem um espirro de timbre agudo, ondulado e longo. Do ponto de vista da musicalidade, é um espirro tradicionalíssimo, cinematográfico, quase uma trilha branca; é o famigerado “atchiiiiiin”, com suave entonação no final.
5. Já é abril, a temperatura média na cidade, à noite, está na casa dos 20 graus. Mas Sidney, o vizinho da casa ao lado, ainda prefere dormir com ar-condicionado. Quando acorda e sai do quarto, logo pela manhã, recebe o choque térmico. Em reação, seu organismo expulsa cerca de oito assombrosos espirros em cadeia. Não há onomatopeia que consiga representar os espirros em cadeia do Sidney, homem de cinquenta anos, estatura média, parrudo, peludo, acalorado. Posso apenas dizer que são rompantes furiosos, vigorosos, másculos, cheios de ar, de inflar as bochechas, com predominância dos fonemas ‘ru’, no início, e ‘fu’, no final.
6. Seu Manoel, 83 anos, tem o espirro mais complexo da rua João Florentino de Jesus. O homem que dá nome à rua foi seu pai. Portanto seu Manoel, que nasceu, cresceu e envelheceu nesta rua (salvo os anos, quando adulto, em que morou em São Vicente, litoral de São Paulo), faz ecoar, há décadas, seus espirros que soam como “icheeee”. Seus espirros já me fizeram viajar ao limiar da loucura, e constatei o seguinte: acrescido um ‘n’ inicial, é como se seu Manoel, ao espirrar, gritasse “Nietzscheee”. Só ouvindo para entender.
7. Interrompo a escrita deste texto, reflito um pouco mais e chego em nova constatação: o recorte é de classe, mas também é etário. Penso que o espirro é uma matiz geracional. Em suas licenças morais e frouxidões físicas, são os velhos, afinal, que protagonizam os grandes espirros, os espirros estrondosos, feéricos, assustadores ou arrebatadores, mundanos ou de outro mundo, harmônicos ou cacofônicos, estremecedores, pungentes, obrigatoriamente cômicos. Em contrate, o jovem, em sala de aula ou fila de mercado, reprime, engole o próprio espirro: no âmago, tem vergonha de produzir sua cacofonia típica; então introjeta, no mesmo âmago, o espirro natimorto. Um a um, os espirros não projetados no mundo se acumulam no interior do ser. É mais um mal que o jovem, via de regra, faz à própria saúde.
8. A garota, 25 anos, padrão de beleza, loira etc., estudante de odontologia, reprime, desde criança, seus espirros em público. Leva o indicador ao nariz, suave, e força o espirro para dentro. A cada vez que faz isso, põe a própria vida em risco. Deveria aprender com dona Arlete, mais de oitenta anos, que, seja onde for, não espirra — berra. Berra e, a qualquer reação alheia que sinalize estranhamento ou susto, dona Arlete encara, olha feio, como se indagasse: “Tá olhando o quê, você não espirra?”.
9. Sou um jovem ainda em processo de desconstrução, de libertação da autorepressão do espirro. Além dos meus vizinhos, também meu pai é uma referência. Meu pai espirrava no seguinte padrão: “ruuushhhh”, alto e grave, sempre em sequência de três. Não herdei exatamente o padrão triplo dos seus espirros, mas herdei a melodia e o volume. Meu pai nunca teve vergonha de espirrar de forma natural; eu, em compensação, para evitar risos e piadas, já tranquei muito espirro em locais públicos. Desconstruir é preciso. Aprender com suburbanos e gente velha é a chave.
10. O espirro natural, solto, extravasado, é o alívio fisiológico imediato para quem o faz e a graça (uma graça ingênua, primitiva) para quem o ouve. Quem nunca riu de um espirro tresloucado dá sinais de que perdeu certa conexão com sua própria origem animal. Quem prende o próprio espirro para evitar a reação jocosa dos outros, idem. Tenho certeza (por intuição, não por verificação) que chimpanzés e bonobos gargalham ao escutar o espirro dos seus companheiros. Aceitar essa dinâmica é, portanto, sinal de tranquilidade e inocência, uma feliz maturidade. Espirrar sem se reprimir é simplesmente estar à vontade no mundo.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #50
Felipe Moreno
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