O domingo que durou quatro anos
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1. Levanto da cama às 6h45 e vou me deitar às 00h25. Entre a manhã e o início da madrugada, vivo o domingo mais longo da minha vida, um domingo que parece não querer acabar.
2. Luiz Inácio Lula da Silva, numa tarde de domingo, atinge marcas inéditas, exorbitantes, e crava, nos flancos da história do país, aquilo que nenhum golpe, nenhuma ditadura, nenhuma hecatombe jamais terá forças para apagar. Lula é o primeiro presidente a ser eleito em três oportunidades; quebra o próprio recorde e se torna o presidente mais votado da história, com mais de 60 milhões de confirmações; por fim, arremata sua glória quando impõe ao seu adversário a marca negativa e inédita: Bolsonaro é o primeiro presidente da história da democracia brasileira a não se reeleger.
3. Por volta das 19h, a multidão de verde e amarelo começa a decair e, de repente, pela primeira vez, em quatro anos de fervor e euforia, se vê abandonada. Deus não atende ao clamor desesperado da multidão de verde e amarelo, que está de joelhos, aos prantos. A multidão, ao menos, aguarda a vinda do seu messias. Mas também o messias, que não saiu dos seus aposentos em nenhum minuto, na última hora a abandona e decide ir dormir.
4. A multidão de verde e amarelo tem, enfim, a oportunidade de presenciar — ainda que em lapso — uma verdadeira experiência religiosa, na carne e no coração: a excruciante sensação de desamparo absoluto, de orfandade cósmica. O desamparo desse maciço bloco de ilusão em que está submetida há quatro anos (ou quatro séculos?) é a valiosa oportunidade dessa multidão, que tornou-se seita, reencontrar a luz que conduz ao caminho da realidade. A rara oportunidade de fazer cair por terra essa pátria mentirosa, essa nação ardilosa, esse deus que não existe.
5. Primeiro comentário, com centenas de curtidas, numa publicação sobre a desolação dos bolsonaristas, na Esplanada dos Ministérios: “Pediram para Deus colocar o presidente da vontade Dele… Deus fez!”.
6. A psicanálise ajuda a explicar nosso dramático e arrebatado momento político. Lula prevaleceu porque é mais bem resolvido com suas pulsões, com seu inconsciente. Bolsonaro, consigo mesmo, teteia uma escuridão, é um ser limitado apenas ao berro e ao balbucio, que se chafurda na lama e habita escombros. Do lado de cá, temos que estar atentos às nossas vulnerabilidades afetivas e nos vigiarmos para não exacerbar a fantasia paternalista com Lula: ele não é nosso pai, não é o pai da nação; é, basicamente, o representante mais forte e adequado para encaminhar grande parte das necessidades e desejos do povo.
7. Ainda que, no fundo e em partes, exista a problemática tendência de termos uma relação paternalista com Lula, a relação da seita bolsonarista com seu líder se encontra em atmosfera tenebrosa: seu líder não é somente pai, mas, acima de tudo, messias, mensageiro, profeta, escolhido, santo, redentor. Essa diferença de perspectiva, que migra do problema do paternalismo à insanidade do messianismo, traduz nossa atual tragédia coletiva e abre todos os precedentes à barbárie. É preciso dar um fim a essa carência monumental.
8. Vencemos Bolsonaro em âmbito institucional e federal. Mas o bolsonarismo, como fenômeno que transcende a política, está mais vivo do que nunca. Precisamos ter o esclarecimento de que o bolsonarismo deve durar mais dez anos e que, durante esse processo, não podemos nos distrair nem um dia sequer.
9. A vitória é de Lula, do povo brasileiro, das mulheres, dos indígenas. E a vitória é de Dilma Rousseff, inquebrantável, digníssima. Do lado de lá, não há general ou valentão, fardado, maromba, másculo ou o caralho, que seria capaz de resistir a um décimo de todos os flagelos que Dilma Rousseff, mulher, suportou durante sua vida. Torturada, usurpada; usurpada, torturada, a toque de barra de ferro, porrada, punhalada nas costas, golpe, durante anos a fio. E ontem, à meia-noite, Dilma, com 74 anos, estava no topo, inquebrantável, digníssima, firme e serena. Venceu a humilhação porque sabia da exaltação.
10. Agradeço à vida por ter me feito corintiano, porque ser corintiano, para além de todas os sofrimentos e bênçãos, é ser formado em escola de resiliência emocional; é vencer no suor, no sangue, na raça, sempre, com virada no último lance da decisão. A virada de Lula, e sua vitória apertada, também é a vitória de um corintiano, no espírito Corinthians.
11. Que tenhamos a visão correta da história, não caiamos na distorção de que Bolsonaro é a aberração em exceção, a extravagância inédita, e Lula, por sua vez, a normalidade que está de volta. É o contrário: Bolsonaro, e tudo o que representa, é a regra da história desta sociedade assentada no patriarcado, no escravagismo, na exploração de povos e terras, na usurpação, na barbárie, no ódio. Lula é a exceção que, extraordinariamente, vingou pela terceira vez. Nossa luta é fazer vingar, várias vezes consecutivas, todas as expressões que a sociedade da barbárie legou à exceção. Vingar a exceção disparadamente, até que ela, depois de muito, dilua a regra.
12. Um domingo que durou quatro anos. Como se um buraco de minhoca tivesse unido a ponta do domingo de 28 de outubro de 2018, nosso pesadelo, com o de ontem, da redenção: 30 de outubro de 2022. E nos permitiu, enfim, dormir uma noite em paz. Espero que Lula tenha tido uma boa noite de sono; desejo que tenha a melhor saúde para os próximos quatro anos. E que a melhor saúde também nos atinja, já que o suspiro de alívio deve ser entendido como fôlego para as tantas lutas postas no horizonte.
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Felipe Moreno