O despertar com o ordinário som das coisas
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1. Este é um texto estranho, com título estranho e tema incomum. Talvez ambíguo, pois é da ordem do banal e do magnífico. Conhecemos o termo despertar pelo seu significado comum, que designa a experiência cotidiana de acordar de um período de sono, ou pela definição abstrata de um despertar sinônimo de iluminação, tal qual professam as principais tradições do Oriente. O despertar do sono é algo diário que acomete a maioria dos seres vivos. Cultura New age e jovens místicos esgarçaram a expressão do despertar religioso do qual, supostamente, nós, leigos e praticantes de nada, estamos muito distantes. Quero falar de um súbito despertar religioso rente ao chão e pelas lentes do banal.
2. O súbito despertar religioso rente ao chão e pelas lentes do banal, isto é: o vislumbre, o rápido clarão de consciência, a perda de contornos de uma noção autocentrada, uma total abertura frente à existência, uma experiência de um segundo, dois segundos, mas que nos esvazia de nós mesmos e nos enche de vida e mistério, a partir de um acontecimento extremamente específico e mundano: o som produzido pelos fenômenos naturais e, mais especificamente, o som produzido pelo contato de um objeto com outro; um acontecimento aleatório, surpresa, acionado no atrito de coisas apartadas dos ritos de religião, pois não são totens ou estátuas, objetos santos e sacros, mas vassouras, pedrinhas, castanhas, tanques, moedas.
3. A pedrinha e o bambu, um koan. Foi meu primeiro contato com uma história sobre realização espiritual gerada a partir de… Uma vassoura, uma pedrinha e um bambu. Um discípulo, após anos de fracassada tentativa de compreender o zen pela via intelectual, dos estudos e da análise, abdica, enfim, da sua postura para viver de forma prática e simples, contemplativa, longe das teorias. Numa manhã, como em todas as manhãs, o discípulo varre o entorno da cabana. Vassoura de palha nas mãos, diluído na atividade, ele espana uma pedrinha; a pedrinha rola e colide num bambu; em meio ao silêncio, o som da pedrinha que bate na no bambu é satori: ali, o discípulo experimente a realidade tal como é.
4. E. M. Cioran, em Do inconveniente de ter nascido: “Quando eu caminhava, tarde, pelo trecho bordeado de árvores, uma castanha caiu aos meus pés. O ruído que ela fez ao quebrar, o eco que suscitou em mim, um tremor desproporcional a respeito desse acontecimento ínfimo, mergulharam-me no milagre, na embriaguez do definitivo, como se não houvesse mais perguntas, apenas respostas. Fiquei embriagado de mil evidências inesperadas, com as quais não sabia o que fazer… Foi assim que estive perto de alcançar o supremo. Mas achei preferível continuar o passeio”.
5. O mestre zen era cético quanto à intenção de tornar a poesia um dos fundamentos da prática zen. O mestre indagou Bashô, quis saber como isso era possível, e Bashô respondeu — e convenceu o mestre — com um haicai: o velho tanque/ uma rã salta/ barulho de água. A rã. O salto. O barulho da água. Onde “o sentido descansa” (Barthes, sobre o haicai), ou, melhor: onde nossa necessidade de sentido descansa, o real, imperturbável, nos atravessa — e nos ilumina. Nos atravessa e nos ilumina não pelo canto da rã, evocativo; mas pelo salto da rã e pelo barulho da água.
6. Fila dos Correios, três da tarde. Estou em pé, papelzinho da senha na mão, entre a pressa e o tédio. Os minutos passam e minha pressa se esvai, o tédio vira calma: sem celular, os olhos absortos em tudo e em nada ao mesmo tempo, enquanto não chega minha vez, consigo, durante aqueles minutos, sem querer, ser tocado por uma calma boa. Estou próximo da porta de vidro e os raios de sol, mornos, banham minhas costas: daí também vem a prazerosa sensação de paz, em meio a este ambiente utilitário. A mente vaga, leve, divaga, suave, em tudo e em nada. A mente passa e, súbito, a mulher do caixa 2 deixa uma moeda de 1,00 real cair. A moeda tilinta no piso, uma, duas, três vezes. O som da moeda pulando no piso, em fração de segundo, me fisga e me rasga, me captura e me abre: a vida me oferece algum desenlace inequívoco, total, que ecoa veloz, mas deixa um perfume. Quase não sou capaz de exprimi-lo em palavras. Essa minúscula experiência é como o avesso de um déjà-vu.
7. A pedrinha, o bambu, a castanha, o salto da rã na água do tanque, a moeda. Mas também as gotas de chuva que caem nas folhas, no telhado ou na calha, enquanto os olhos estão fechados. E vale expandir as possibilidades, um pouco acima do chão: Newton e a maçã; o barulho do trovão; o som eterno emanado pelo universo, vibração primordial, encarnação sonora da criação, segundo a tradição hindu: Om. As múltiplas formas de aparição do puro real num raro e feliz encaixe com nossa consciência, o ego eclipsado, aberta o suficiente para se fundir com a inocência dos fenômenos, ou ordem cósmica, se preferir.
8. A fé exige o salto — o salto da fé. Crer é olhar para cima — pedir aos céus. Sem firmamento, não haveria fé. Não haveria fé nem fábulas, mitos, teleologias que incrementam outros mundos. O céu, este que podemos ver acima de nós, em qualquer momento ao ar livre, seja azul ou nublado, é o espaço da transcendência. É possível se realizar com os sons que vêm de cima. Mas também é assim para os sons que a terra produz.
9. No chão reside outra força — e nossa cultura rejeita seu valor, é fechada para sua primazia. Do chão vem a força vital de todos os corpos, cujo canal de entrada são os pés dos humanos, as patas dos animais terrestres. O chão não é menos nem mais que o céu: é sua antítese e sua complementação, talvez. Se o céu é o lugar da transcendência, o chão, por correlação óbvia, é o espaço da imanência. Entre vários aspectos e primazias, há um, estranho e singular, realce deste texto: coisas tilintam no chão, nas coisas da terra. As coisas que tilintam no chão provocam, em olhos livres e mentes abertas, uma súbita integração, que também é dissolução, ou realização. O chão, as reles coisas que se chocam com o chão, o som produzido pelas reles coisas que se chocam com o chão: o telos no telúrico, mística das coisas minúsculas.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #49
Felipe Moreno
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