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July 31, 2022

O ambiente por trás da cidade



Bioma e paisagem

Existe a cidade e, antes da cidade, o ambiente — fundação biótica e paisagística. A cidade, quando megalópole, mina o ambiente, pois o modelo dominante das cidades, no mundo globalizado, é o do assentamento massivo, expansivo e, sobretudo, violento das suas camadas de matéria hipermodificada sobre algum bioma: ruas, avenidas, estradas, rodovias, edifícios e imóveis de alvenaria, automóveis de queima de combustíveis fósseis massacrando a flora, a fauna, o clima e a paisagem daquele lugar.

O ambiente, no entanto, é uma constituição tão profunda
(milhares e milhares de anos para a sua formação; infinitas interações geofísicas ao longo desses milhares de anos) que, em partes, resiste. O clima, mesmo intoxicado, e a paisagem, ainda que minada, resistem em fragmentos, se mantêm ativos em réstias de vida que as cidades continuam a atropelar, a declarar guerra.


Toda megalópole tem a capacidade de engolir, parcialmente, a percepção do ambiente, isto é, a relação dos nossos sentidos com o clima e a paisagem originais daquele território. Quando a mirada no horizonte já não pode captar nenhum morro, nenhuma serra, nenhuma instância verde, nenhum ponto vazio, mas apenas torres de cimento; quando o olfato já não consegue sentir o cheiro fresco da vegetação, mas somente as exalações tóxicas da própria cidade; quando os ouvidos não são mais capazes de escutar a atividade das aves, mas apenas a profusão de ruídos sintéticos e funcionais da própria cidade, os sentidos, enfim, retraem-se ao fantástico curral antropocêntrico.

Daí o agravamento da antipatia com as milhares de espécies que, hoje, em decorrência do nosso próprio antropocentrismo, desaparecem em velocidade assombrosa. Tenebroso ciclo de retroalimentação: com nossos violentos assentamentos urbanos, intoxicamos e minamos o ambiente de tal forma, que espécies nativas são expulsas, desaparecem; expulsas ou desaparecidas, todas distantes de nós, enclausurados em redomas artificiais, tais espécies, vivas ou mortas, lutando ou sucumbindo, já nos são indiferentes.

Mas os fragmentos, as réstias de ambiente, junto com sua porção de biodiversidade, insistem em não ruir por completo. Mesmo na cidade de São Paulo, crosta titânica que engole e expurga seus habitantes, num fluxo e refluxo que ocorre várias vezes ao dia, ainda resiste uma porção de clima e de paisagem. Porque o ambiente de São Paulo vem antes que a megalópole São Paulo.

A resistência, contudo, não pode se manter como imperativo: deve desdobrar-se para o estado de existência. Existência abundante. Quando falamos sobre a urgente necessidade de reflorestar o mundo, também as grandes cidades entram na lista. Cada grande cidade precisa ceder espaço, abrir largas e fundas trincheiras para que o ambiente, enfim, volte a vivificar. Toda grande cidade também precisa se reflorestar. (Jardinagem vertical em edifícios comerciais de alto padrão não é reflorestar, mas ludibriar.)

Vamos desfazer um pedaço importante do nosso curral antropocêntrico quando as próprias grandes cidades nos oferecerem oportunidade de uma outra identificação com seus territórios: uma identificação não apenas com a crosta massiva e artificial que hoje são, mas com seu bioma e paisagem originais. Uma identificação, enfim, não somente com a cidade como constituição imaginária e humanocentrada, mas com o ambiente da cidade e suas possibilidades de vida para além do humano.


Ambientação e regeneração

O ecocídio exige ambientação. Mais que possuir e se identificar com um pedaço de terra, é necessário pertencer a um pedaço de terra; se identificar, até o enraizamento, com esse pedaço de terra. (Identificação e enraizamento como sinônimos de cuidado e relação, jamais domínio e possessão.)

Vincular-se com o bioma e a paisagem que compõem a vida de um terreno, um bairro, uma vila, uma cidade. Verter a própria vida, num contínuo exercício de intimidade, no local em que se habita. A começar pelo mínimo entorno. Fazer da casa, o mundo; do bairro, o cosmos. Pois ambientação, que é cuidado, relação, profundo sentimento de pertencimento e acolhimento pelo mundo, fortifica a regeneração.


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Abraços e até a farfalhada #23,
Felipe Moreno

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