§ A colossal saga dos pássaros na vida de concreto. A colossal capacidade de adaptação, resiliência.
bioconstrução
do João-de-barro
no vão do semáforo
§ Asfalto imenso, liso e limpo: a bicicleta desliza, vento no rosto, prazer em viver. De repente, a saliência de penas, sangue escuro, pequena vida deformada. Paro e miro. Pequenino. Filhote, provavelmente. Talvez fosse o primeiro voo, arriscado, na pretensão de atravessar a rua. Aventura, frio na barriguinha. E as asinhas, que necessitavam de mais força e prática, arrefeceram no meio do caminho. Avenida contra aves: mínimo erro e paga-se com a vida. Agora exposto, explícito, pequena vida profanada nesta passarela de máquinas velozes, mortíferas, movidas à base de sedimentos gestados na paciência dos ciclos, nas profundezas da superfície; sedimentos de ancestrais comuns das aves, estas que sobrevivem e correm muitos riscos ao atravessar ruas e avenidas.
o passarinho
pisado no asfalto —
silêncio no ninho
§ Papéis esquecidos, lavados na máquina, picotados no bolso da calça jeans. Caminho enquanto a mão cutuca o bolso e esfarela os restos. Sensação tátil agradável, ao passo que saber que meu bolso tornou-se um liquidificador de papel reciclado me causa desconforto. Encontro um lixo. Enquanto descarrego o bolso, uma pomba, imunda e frenética, se aproxima: olhos vidrados, pescoço ciscando três vezes por segundo. À espera de comida, me ronda, ostensivamente, e me sinto pressionado. A pomba bica o farelo de papel que cai da minha mão. Centímetros à frente, bem abaixo do lixo, encontra um pedaço de tomate esturricado: banquete surpresa, a pomba, imunda e frenética, destroça o pedaço de tomate estorricado, bem abaixo do lixo e na altura dos meus pés, enquanto pinço, do fundo do bolso, os últimos farelos de papel lavado.
bico sem asco
fareja, bica e esfarela
o fermento das frestas
§ Não fosse a espécie tão complicada, o mundo tão crítico, a rotina de uma vida inteira estaria montada: além das coisas muito práticas e íntimas, flanar pelo bairro, escrever linhas e haicais. Puxar o caderno do bolso da camisa, qual um fumante com seu maço e isqueiro, para anotar a vida do entorno, quero dizer: grafar a vida que me cerca enquanto caminho, seus detalhes espelhados pelo chão, à meia altura, ao alto.
pardal no campo
voa entre as traves
no ângulo, golaço
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Abraços e até a farfalhada #41,
Felipe Moreno
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