Neurose teológica sentado no meio-fio

§ Não fosse a aguda consciência da morte (de todos, de tudo, mas sobretudo a minha), jamais teria me colocado a escrever uma única linha. Minha relação com a escrita seria a de redigir e-mails, mensagens e listas de supermercado.
§ Por indiferença mórbida ou, ao contrário, coragem desmedida, é estarrecedor o fato de não termos sucumbido à asfixia diante da descoberta da existência de trilhões de estrelas e galáxias.
§ O mundo puxa — é necessário participar, tomar partido nele. Impossível ser Buda. Mas é possível aspirar uma porção do estado búdico.
§ Tem aumentado a quantidade de vezes em que sinto vontade de acreditar em deus. Quase acredito. Mas quase acreditar é nada acreditar. A fé não negocia nem com o mais bem intencionado meio-termo.
§ O ateísmo é a resposta capenga à falaciosa questão que só pode associar o sagrado à fé. Mas no sagrado não se crê, o sagrado se aprende, tem acesso, se experimenta. Deus é uma sensação que invade a consciência através de uma série de exercícios entre a acrobacia e o balbucio.
§ Convencer-me de que até os místicos falham, se equivocam em seus ensinamentos, e que suas sabedorias não servem para todos.
§ A radicalidade do erotismo apela ao sagrado. Bataille versa sobre o tema mais do que ninguém. A comparação comum entre o pornográfico e o erótico mantém o apontamento difícil de refutar: o pornô se repete na explicitação, até a saturação do mesmo, do achatamento do desejo; o erotismo se enverada no escuro e, pelas reentrâncias, flagra o misterioso — fenômeno que, por sua forte alteridade, sua noite sem contornos, nos deixa entre o transe e a transfiguração. Na radicalidade do erotismo, surge o jogo poético que funde mística e excitação, suplica e sussurro, oração e gemido, dor sacrificial e gozo celestial. Santa Teresa de Ávila, nos êxtases pelas aparições de deus: “Quando o doce Caçador/ Me atingiu com sua seta,/ Nos meigos braços do Amor/ Minh’alma aninhou-se, quieta./ E a vida em outra, seleta,/ Totalmente se há trocado:/ Meu Amado é para mim,/ E eu sou para meu Amado”. Aparição de Jesus para Santa Margarida Maria, a fim do matrimônio divino: “Eu te escolhi para minha esposa. (…) Se me dás este desprezo, abandono-te para sempre. Mas, me me fores fiel, não te deixarei…”. Um samba de João Nogueira: “Eu quero te rezar em terços/ Te falar em versos/ Te ninar em berços/ Me perder no meio/ Do teu lindo corpo/ Beijar teus seios/ Me sentir bem morto”.
§ Tudo tende ao nada e, ainda que demore uma eternidade, o que quer que exista deve se desmanchar no vazio cósmico. Constatação que, sorte a minha, mais me acalma do que deprime. Seria esse suposto e estranhíssimo apaziguamento frente à questão terminal (que costuma castigar a consciência da maioria) o núcleo irradiante de todo contentamento que sinto pela vida?
§ Agarrar-me no rabo da beleza e deslanchar: rasgar o tecido da mediocridade sem chama e sem cor. Agarrar-me na ponta da estrela da beleza e fulminar — vidrado de sol e azul. Abandonado na beleza: encontrado até no mais temido ermo. A estética redime tanto quanto a oração.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #104,
Felipe Moreno
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