Nelson Rodrigo
Segunda-feira, 12h30, 26 de setembro de 2022
Vilson e Dalva fazem visita à cunhada, dona Ana. Devem voltar a Joinville, onde residem, dentro de algumas horas. Antes, decidem dar uma última caminhada pelo bairro. Vão até à pracinha, arborizada, grande porém escondida, atrás do posto policial e margeada pelo mar. O miolo da praça abriga um velho santuário: sobre pedras, imagens de santos, papéis com orações, velas derretidas. Mais à frente, um espaço aberto, com ampla visão para as águas azuis e a Ilha de Santa Catarina. Assentado por rochas e velhos escombros de alvenaria, aqui, há muitas décadas, era uma salga de peixe, onde muitos homens e mulheres trabalhavam. Dentre eles, o o avô e a avó de Marília, que ali se conheceram, depois se casaram e tiveram onze filhos na casa de madeira onde, atualmente, moramos.
Vilson bate os olhos sobre uma das rochas e, sobre a superfície acinzentada, um ponto amarelo e trêmulo.
Volta, às pressas, junto com Dalva, para a casa da cunhada, que fica na rua José Dutra, vizinha à nossa. Depois de três dias de dor e solidão, Neide Raquel está coberta pelas palmas desse homem de mãos grandes. A casa de dona Ana foi uma das tantas que recebeu o panfleto com as informações da nossa desesperada busca. Ligam para Marília. Menos de dois minutos depois, estamos no portão da residência.
Neide Raquel está exausta. Guerreirinha: foram três dias e três noites sob frio, chuva, escassez de comida e água. Logo que a vemos, eu e Marília caímos em pranto. Vilson me abraça. Ana sorri e conta que já teve muitas calopsitas. Neide Raquel, aos farrapos, tem marquinhas vermelhas sobre as penas da cabeça. Dalva, que chora e ri, diz que não é sangue, mas mancha do seu batom. Dona Ana finaliza: “É São Francisco! É São Francisco!”. Quando volto para casa e conto a notícia para a minha mãe, aflita com o sumiço, em São Paulo, ela dispara: “Pedi tanto para São Francisco!”.
Menos de duas horas depois de eu enviar a farfalhada Neide Raquel, em que destilei a aflição do sumiço, nossa calopsita está de volta.
Domingo, 7h20, 02 de outubro de 2022
Logo quando Neide Raquel voltou para casa, considerei arranjar outra calopsita, pois, em companhia, vivem melhor. Mas se não temos coragem de comprar, de que forma arrumaríamos outra? Sem alternativa, esquecemos a ideia.
*
Às 7h20, Marília me acorda e diz que recebeu mensagem de uma mulher chamada Inês, da vizinhança.
— Sabe quem é? É a mãe daquela dupla sertaneja de adolescentes, Lucas e Lorenzo. Uma vez passamos na frente da casa e vimos o ônibus estampado com a cara dos meninos, tiramos sarro e tudo mais.
Daí que Inês, sabendo do sumiço de uma calopsita no bairro, mas sem saber que esta já havia sido encontrada, nos oferece uma das suas três calopsitas; e explica:
— Eu tinha uma só. As outras duas apareceram. Pousaram na gaiola e nunca mais foram embora. São três machos.
Marília, enfim, explica que Neide voltou, mas não esconde o desejo de adotar outra. Inês topa, diz que, para companhia de Neide, concede um dos machinhos para nós. Logo estamos no portão da casa da mulher. Batemos palma enquanto ouvimos os latidos do seu shih-tzu e contemplamos o ônibus de Lucas e Lorenzo estacionado no quintal.
Segunda, 10h, 03 de outubro de 2022
Em outras ocasiões, eu e Marília brincávamos que, se tivéssemos algumas calopsitas fêmeas, todas teriam nome composto — nomes de tia — com iniciais N e R, à la Neide Raquel. Sugestões: Neusa Regina; Nice Rogéria; Nádia Rosana.
A segunda calopsita, agora, é uma realidade. E é macho. Marília, então, é rápida no gatilho: Nelson Rodrigues. Homenagem ao escritor e dramaturgo que, apesar de tantas polêmicas, eu muito admiro. Quase perfeito. Nelson Rodrigo, próximo de um trocadilho com o escritor, parece soar melhor.
Em menos de uma semana, fomos do um (Neide Raquel), ao zero (desaparecimento de Neide Raquel), ao dois (volta de Neide Raquel e presente com Nelson Rodrigo). Às vezes, a vida nos tira tudo e ponto; outras, nos tira para devolver em dobro.
Nelson Rodrigo canta, canta alto, ardido, com muito fôlego. Está se adaptando. Ontem, fim da tarde, no quarto, Neide Raquel e Nelson Rodrigo assistiram à apuração dos votos com a gente. O macho é mais propenso a aprender a cantar e falar. Até dia 30 de outubro, devemos ensiná-lo a dizer “Fora Bolsonaro”. Quem sabe não entoa, sem medo de ser feliz, um “Brilha uma estrela…”.
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Abraços e até a farfalhada #32,
Felipe Moreno