Neide Raquel
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Domingo, 01 de agosto de 2021
Tarde fria e cinza, domingo, os corpos, em preguiça, sugerem cobertas e maratona de alguma série. Mas decidimos sair para flanar. Caminhamos, lentos, pela calçada úmida, próxima à praia de Itaguaçu. Passamos o café lotado, com pátio externo: gente bem vestida, burburinho, tilintar de muitas porcelanas, aroma de café. Sigo com o pescoço virado à minha direita. Bem ao lado, um edifício comercial, com marquise branca. No piso, choco os olhos num ponto amarelo e tremulo. Um pássaro, sim. Um bem-te-vi ferido? Dois passos à frente e a surpresa de encontrar, naquele ambiente, uma calopsita. Atônitos, olhamos para a calopsita, encolhida de frio; olhamos para o pátio do café lotado. Tentamos enxergar relação. Nada. Consentimos o absurdo e a necessidade de agir.
Marília faz a cobertura enquanto eu atravesso a rua, saco caixas de papelão do lixo dos restaurantes. Concentrado e cauteloso, armo a arapuca. Dentro da caixa, ela se assusta, mas logo se assenta. Voltamos correndo para casa e nos trancamos no quarto. A calopsita, mansa, já sobe nas nossas cabeças, permite carinhos. Nome? Qual nome daremos? Não podemos fazer isso: alguém perdeu esta calopsita, deve estar sofrendo e merece recuperá-la.
A dois dias de Marília completar 27 anos, topamos com uma calopsita vinda sabe-se lá de onde, perdida só deus sabe desde quando, sob dezesseis graus, na marquise do prédio comercial, fechado no domingo, e ao lado do pátio do café lotado de gente elegante. Dias a fio atrás do dono ou dona. Divulgações em grupos de Facebook etc. Gente que perdeu outras calopsitas entra em contato, na vã esperança de que seja esta. Desatino cotidiano, nunca mais encontraríamos a suposta pessoa responsável por essa calopsita que agora vive conosco.
a esmo, o choque:
surpresa amarela
sob o dia cinza
Segunda-feira, 16 de agosto de 2021
Arranjamos gaiola, duas gaiolas, uma pequena, móvel, e outra robusta, que, para ela, faz parecer um sobrado antigo e amplo. Toda a segurança para protegê-la dos três gatos que vivem na casa. Nome, que nome daremos? Em afinidade, eu e Marília gostamos de dar nomes de gente — nomes populares, ou de gente idosa — para os bichos. Sugiro Raquel. Marília gosta, mas ainda sente incompleto. Fala em Neide. Acho maravilhoso. Firmamos em Neide Raquel.
Olhamos para a calopsita, ao mesmo tempo que a chamamos pelo nome, e tudo soa perfeito, tudo faz sentido. Neide Raquel é presente da Ilha, ainda que às custas do sofrimento de quem a perdeu.
Sexta-feira, 9h30, 23 de setembro de 2022
Início de primavera, dia raiando. Café da manhã: tapioca com abacate, no quintal, aproveitar o sol da manhã. Sentados na cadeirinha de praia, rentes à parede, onde a gaiola de Neide Raquel está pendurada, praticamente sobre nossas cabeças. Agitada, ela põe o pescoço para fora, exige carinho. Ainda sentado, estico o braço e acaricio a cabecinha amarela.
Ao longo de pouco mais de um ano, eu e Neide Raquel combinamos um posicionamento específico para as trocas de carinho. Pescoço abaixado, ela descansa o bico no meu polegar. Meu indicador e dedo do meio, enfim, friccionam as penas, tocam a pele oculta, rosada e frágil, e ela, à vontade, suspira, sutilíssima, e fecha os olhinhos. Neste momento de puro regozijo entre o homem e as coisas da vida, disparo meu bordão preferido, com minha voz adequada para bichos, escalafobética, que uso apenas em solidão ou na presença dos íntimos, para não assustar ninguém: “Coisa mais rara da Grande Florianópolis”. Ou, na ocasião em que ela vira o pescocinho e, com os olhinhos castanhos escuros, me olha de cabeça para baixo: “Os olhinhos mais raros da Grande Florianópolis”. Ainda há um outro, o mais brega e, ao mesmo tempo, o mais profundo: “Coisa mais preciosa da vida do pai”.
No café da manhã da última sexta, 23 de setembro, pouco mais de um ano de convivência, faço meu último carinho na calopsita que encontramos na rua, enquanto sussurro o bordão de que ela é o melhor presente que Florianópolis me deu, com voz para bichos, e, em seguida, me dirigindo à Marília, me retifico, já com voz para humanos: “A Neide foi o melhor presente depois de você, claro”. A menos que o tempo prove o contrário, foi meu último carinho em Neide Raquel.
Sexta-feira, 13h10, 23 de setembro de 2022
Com a chegada da primavera, Neide Raquel bate asas para longe. Sua gaiola está no quintal, sob o sol — bichinhos friorentos, brinco que a temperatura de quarenta graus é fresco para eles. Eu e Marília estamos na sala, almoçando. Marília me interrompe e diz que ouve a Neide, como se estivesse cantando do telhado. No instinto de pai em alerta, levanto-me da mesa e, afoito, corro até o quintal. Gaiola aberta. Últimos piados distantes de Neidinha. Depois, silêncio. E pânico.
Contatos e vistoria na casa de vizinhos, grupo de WhatsApp, grupos de Facebook. Dezenas de cartazes colados em postes, panfletos nas caixas de correio ou por debaixo da porta das residências do bairro. Ontem, pulei muro e invadi duas casas coladas à nossa, que estavam sem a presença dos moradores. Nada de Neide Raquel. Até agora.
Segunda-feira, 10h, 26 de setembro de 2022
Quase setenta e duas horas sem saber para onde foi Neide Raquel, vivo a apreensão ante o desconhecido, a dor da saudade, a angústia de não saber se sobreviveu ou se não resistiu, se terei a oportunidade de reencontrá-la ou se a manhã de sexta-feira, de fato, foi nosso último contato.
Os anos de meditação diária não me tornaram imunes a dores de perda, pois não é esse o objetivo, nem o sentido da prática. Os anos de meditação engendraram na minha consciência, ainda que de forma sutil, a capacidade de vivenciar a dor na íntegra. Se a dor toma conta, vivencio a dor, experimento a sensação física da dor e observo o enredo — miscelânea de memórias e anseios — que a mente cria. Então choro, e sou apenas a inteireza e a realidade de uma vida que chora.
Os anos de meditação também me ajudaram a enxergar de forma mais clara a cadeia de relações do mundo, a infinita cascata de interdependência da qual fazemos parte e ajudamos a criar, seja pela via do sofrimento ou da alegria, da miséria ou da compaixão, da ruína ou da feliz pulsação. Neide Raquel é fruto de mais uma, dentre as tantas facetas, que envolvem a relação de exploração de seres humanos sobre animais silvestres. Por ética, não posso colaborar com essa cadeia de exploração, logo, jamais devo comprar um animal. Acolhemos Neide Raquel porque ela apareceu em nossas vidas e, se não o fizéssemos, ela corria riscos. Extirpada do seu habitat, desadaptada, desnaturalizada, restou-lhe a vida segura das gaiolas, e nossa responsabilidade de dar a ela uma convivência minimamente digna, estipulada de acordo com as condições preestabelecidas pela cadeia de exploração. Se Neide Raquel não voltar, sei que nunca mais terei relação íntima com pássaro algum, exceto pela ocasião de um novo encontro extraordinário.
Neide também me fazia companhia no pequeno escritório, de onde escrevo agora. Eu debruçado na escrivaninha e, na parede de madeira, com um prego firme, sua gaiola, com ela lá dentro, serelepe, ou quietinha, cochilando. Ou solta, pousada na minha cabeça, ou me atazanando sobre a escrivaninha, bicando as teclas, ensaiando arrebentar o fio do mouse, sem me deixar trabalhar. Tudo isso, até sexta-feira.
Ontem, domingo, decidi varrer o quintal. Sentia uma dor de luto, aguda, áspera. Esbarrei com o cabo da vassoura no vaso de gerânio sob o chão. O aroma do gerânio se manifestou e fundiu-se com a minha dor. No ato, recebi este haicai:
dor de luto
com cheiro de gerânio —
a vida compensa
Nossa dor passará, seja porque desarmada, após feliz reencontro com Neide Raquel, ou porque diluída no tempo, fundida — e amainada — com as coisas e aromas do mundo.
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Abraços e até a farfalhada #31,
Felipe Moreno