Nas frestas do cotidiano
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1. Mente serena, corpo ativo, dia de semana qualquer: agachado em frente à cama, o quarto quieto, dobro minhas camisetas, calças, cuecas e meias, uma a uma, no cuidado de um artesão. Sinto paz; e logo intuo: o real contentamento em viver está assentado nos detalhes do corriqueiro. A bem-aventurança está nas frestas do cotidiano.
2. Toda pressa é o princípio do desastre. Ansiamos mais que podemos e, ansiosos, vivemos a angústia do descompasso. Estados grosseiros de se viver: já não caminhamos por caminhar, lavamos a louça por lavar, dormimos por dormir. O potencial de cada atividade cotidiana é embotado pela projeção da próxima, tirania inflacionária, irreal. Somos crescente grosseria e descompasso. O pecado é contra o bálsamo da calma e do instante, de já não poder, ou quase nunca conseguir, mergulhar na calma do instante enquanto instante. Cuidado, exímio cuidado. Cuidado com a percepção e, em conjunto, com os gestos. Perceber, sentir e manejar as coisas, se relacionar com o mundo, atinado à proeza do extremo cuidado. O melhor guia para essa jornada de delicadezas? A respiração, a percepção consciente sobre a própria respiração.
3. Mesmo sabendo que eu poderia ou deveria ganhar mais dinheiro; mesmo não tendo garantias de futuro com esse ofício, quase todo dia, durante os mergulhos da artesania editorial — as mãos em contato com papel, os olhos, curiosos, relendo um trecho aqui outro ali, dessas pequenas obras que já editei e publiquei —, quero agradecer e agradeço, a deus, à vida, ao destino que, durante os últimos anos, têm me proporcionado o privilégio de viver por esse ofício sábio e manso. Meu pequenino tesouro caseiro.
4. A mínima interiorização me leva à escrita, mapa de signos decantados, por isso calmos. Obcecado por controle e ordem, a escrita me provê a falsa (ou verdadeira?) sensação de estar acima do meu caos. O menor sinal de inconstância bagunça o tabuleiro interno: dois dias sem uma única frase, que seja, me levam ao arrepio da desordem.
5. O obsessivo conta com a vantagem de viver o prazer da repetição, de se chafurdar e gozar a ruminação do que quer que seja. No oceano do comum e do mesmo que é o cotidiano, o obsessivo é peixe sorridente.
6. A vida nos concede o dom da repetição para que, no exercício da sua função, aprendamos a ser a própria vida. Ser é refazer o que se sabe que tem que ser feito. E refazer é refinar. Cultura nada mais é que um arcabouço de recorrências e constâncias. Tudo, na natureza, acura, depura. Natureza é disciplina e disciplina é a magia da matéria.
7. Fazer o que quero fazer, sim — submetido a uma única ordem intransponível: fazer o que quero fazer é fazer o que a vida quer que eu faça. Há um querer da vida, sutil, subcutâneo, ao mesmo tempo que total, onipresente. Um querer não totalitário, mas indicativo e simples: quer a vida ampliar seu senso dentro das nossas pobres vidas. Pobres porque sofremos. Sofremos porque somos a distensão entre o desdém a respeito do que a vida quer de nós e a exigência de que a vida altere seu senso para se submeter ao nosso querer de vida pobre. Janela do quarto: cinema da realidade pacífica deste sábado. A ave preta passa, bem no alto, como que deslizando no pano de fundo do céu todo cinza. Ponto negro deslizando nas alturas, garoa finíssima, e eu capturo a cena, fisgo a paisagem como se a paisagem engolisse meus olhos: não pisco e o olhos lacrimejam. Desbunde sóbrio, através do pouco. A vida, muito, me quer em menos, para que, no menos de mim, ela possa se ampliar.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #63
Felipe Moreno
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