Meu vizinho era um cavalo e outras expirações

§ Moro na parte urbana da capital de um estado brasileiro — e o terreno baldio no fundo da minha casa, rua sem saída, é como uma pequenina fazenda. Abundância vegetal, alarido constante de pássaros, um cavalo. Até quando? A especulação sobre o futuro da cidade onde vivo já nunca vem desacompanhada de dor, revolta e decepção. Serei eu, daqui a vinte anos, o homem de cabelos grisalhos que, voz grave, destila aos mais jovens: “Vinte anos atrás, onde agora tem aquele condomínio e aquele pátio comercial, era uma fazenda. Para vocês terem uma ideia: meu vizinho era um cavalo”.
§ O All Star jogado de qualquer jeito no canto do quarto da minha amiga acusa que ainda somos muito jovens. Já temos trinta anos? Moramos de aluguel em kitnets, não temos filhos, tampouco planos de tê-los. Ela tem trinta anos cravados, completados em junho. Eu, 32. Enquanto ela viaja (visita à família, cidade do interior do estado, de ônibus), passo na sua casinha para dar comida aos dois gatos e pegar o carro emprestado (Uno Millie 2002, que ela comprou da mãe, por cinco mil, na semana retrasada). Daqui, vou direto para um show no Centro. Não tenho hora para voltar para casa. Estou de All Star preto.
§ Maltrapilho, imundo, jogado no meio-fio, o homem veste moletom cuja estampa diz: “Born to win”. Do outro lado da rua, prestes a entrar num Jeep 4x4, a mulher carrega ecobag com o slogan “Simplicidade é a maior riqueza”.
§ É óbvio que, mesmo para o ateu mais ferrenho, o poeta tem a mesma predisposição que o místico. No geral, o melhor poeta é aquele que se torna um místico mal-acabado.
§ O padre é o que respira a vida com a ajuda do aparelho metafísico. Já o ateu é o castrado do sobrenatural.
§ Voraz, o desejo deseja até aquilo que ele não quer.
§ Ninguém é Buda. E, ao mesmo tempo, até o assassino, quando longe do seu ofício, liberado de toda e qualquer intenção, seja boa ou ruim, no puro instante de distração concentrada, até o assassino é um Buda.
§ Privilegiar sempre os fragmentos, porque mais próximos à poesia — e a poesia é a sabedoria absorvida pela intuição, num só clarão. Ao passo que a encadeada e caudalosa teoria, mais exigente, costuma falhar: seu didatismo prolixo nutre menos e, não raro, provoca má digestão. Razão pela qual entendemos mais sobre o Ser nos desassossegos de Pessoa do que nos volumes de Heidegger.
§ Pariu duas frases e foi embora, nunca mais a vi. Aquela mulher estropiada, voz esganiçada, veia saltada e grossa na jugular, desopilou da garganta duas frases arrebatadoras, lacônico monólogo entre a sua existência e a crueza do cosmos, mais nada nem ninguém. Quarta-feira, por volta das 20h30, rodoviária de Florianópolis: duas frases lancinantes, cujo teor e a construção das orações me soaram inéditas, mas das quais — lamento muito por isso — já não me lembro mais.
§ No bolso direito da calça jeans, a coragem — para, em caso de problema ou conflito, saber enfrentar da forma mais justa. No esquerdo, a beleza — para, nas aparições de jardins, cachorros e crepúsculos, saber deleitar da maneira mais entregue.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #110,
Felipe Moreno
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