Meio-dia na cidade (5 haibuns)
§ A igreja neopentecostal: uma caixa preta de cimento, sóbria, lisa, dura, máscula. Na entrada, três quadros, alinhados na horizontal: um leão, um Jesus caucasiano, quase nórdico, e o símbolo da igreja, sóbrio, liso, duro, másculo. A nova igreja neopentecostal: à primeira vista, confunde-se com uma barbearia hipster ou um estúdio de tatuagem.
um fiel na porta
Bíblia e Iphone nas mãos
cabelo platinado
§ No escritório, hora do almoço. Do elevador à calçada, três machos, polos e sociais, cabelos idênticos — mesma barbearia? Sapatos tilintam no cimento, o do meio fala, os outros escutam. Sinais agudos com as mãos, movimento de vai e vem, rosto corado, olhos semicerrados. Fala de sexo. Os colegas imaginam, riem, escondem inveja. E o falastrão continua: voz grave, mão que reproduz um falo, emula um tapa, quadril solto, em ação. Recebem comanda, não agradecem, entram no bifê livre, quarenta e oito e noventa o quilo. De duas a quatro espécies de animais no prato de cada um. Para acompanhar, sobremesas, latas de Coca-Cola. Primeira garfada, mudam de assunto. Agora, futebol. Olhos arregalados, mãos que emulam chute, defesa. Punhos cerrados, gol, risadas. Sexta-feira, meio-dia e trinta e oito.
macho de escritório:
motel caro, comer de quatro
contar vitória
§ Da mesa do boteco, os dois senhores me cumprimentam: como mímica, cada qual com seu braço esticado, mão espalmada, sorriso de repuxar os lábios, sem mostrar os dentes, sobre o bigode grisalho, outros fios grossos, dourados. Braços abaixados, os dedos entrelaçam o copo minúsculo: pinga com mel e limão. Viram, ao mesmo tempo, em sincronia, num só gole; batem o copinho na mesa de plástico, vermelha, estampada com a marca da cerveja mais popular do país; de boca aberta, rangem — aquele som gutural após a queda do trago forte. Depois, um para o outro, sorriem e deixam passar, sem saber ou se preocupar, os minutos do meio-dia, segunda-feira.
piga com mel e limão
respinga na segunda
e encharca a semana
§ Sol de outono: mais luz que calor. Fronteira entre a manhã e a tarde: almoço dos operários, feito religião, comunhão, rito, fartura. Um Corsa vinho, modelo 2002, e um Celta prata, 2006, estacionados na pracinha do bairro residencial. Cerca de seis trabalhadores, uniformes cinzas, terceirizados de alguma empresa de serviço braçal, escorados entre o meio-fio, o muro da casa e os porta-malas abertos. Cada um portando sua marmita. Cada um portando sua história para contar. Marmitas liquidadas, até a última raspagem, sossegam, diminuem o ritmo. Alguns tiram a camisa, se esticam mais. Alguém acende um baseado. Um outro dá um gole da Coca-Cola dois litros, pelo gargalo.
marmita e baseado
garrafa de Coca amassada
resenha e risadas
§ Populações de ratos e baratas, no Primeiro ou no Terceiro Mundo, ainda existirão em cidades inteligentes, pois ratos e baratas devem prevalecer, inclusive, em níveis elevados do ecocídio. Cena insólita, ou nem tanto: no meio da ciclovia, o cadáver de uma barata, em posição comum, ou seja, virada para cima. Inteira, porém ressequida. Envenenada? Até que o jovem de escritório passa, veloz e liso, imponente, indiferente, e destroça o que sobrou desse inseto tão feio e tão adaptável.
patinete elétrico
do playboy high-tech
sobre a carcaça da barata
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Felipe Moreno
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