Mal-estar neoliberal em três fragmentos
§ Embora se empenhe no farejamento minucioso de novos nichos para assimilar e explorar, o atual capitalismo trabalha melhor desenvolvendo seus próprios — seus grupos de base. Uma das crias mais promissoras, grande trunfo, é o influenciador digital: perfil novo, versátil, sempre atualizado. Não qualquer influenciador digital, mas esse, em específico: nômade digital, entusiasta dos monopólios de tecnologia, minimalista, “apolítico” ou, no mínimo, desinteressado por política. Perfil que defende o modo de vida livre, desimpedido, descomprometido — noção que, quando intensificada, leva à esparrela das ideias anarcocapitalistas. Por fim, a característica mais fundamental: estar aferrado, até o último fio de cabelo, ao hedonismo neoliberal: turismo, hotéis, aplicativos, restaurantes, shows e todo e qualquer tipo de entretenimento que, de preferência, produza agitação rápida e sensação de novidade, reafirme o status do grupo e demonstre, através da publicidade, o quão maravilhoso é esse “estilo de vida”.
Vida de viajante, projetificada, digitalizada e monetizada; descomprometida e positiva; líquida, prazerosa e excessivamente autoafirmativa. Ostentação turística, corpo e discurso como cabideiro em que as marcas depositam seus penduricalhos. MacBook, YouTube e passagens aéreas: e essa forma de estar no mundo deve ser defendida como uma pátria ou uma religião. Em nome do tal “estilo de vida”, pessoas deste grupo formam a linha de frente da defesa da lógica neoliberal. Um nômade digital, estudante de marketing, publicidade, é o jovem soldado bem treinado a engrossar o pelotão da máquina mitológica da sociedade de mercado.
§ Aquele colega de universidade, que cursou publicidade, hoje, nas redes sociais, já não se parece tão acessível e comum quanto antes: sua vida, agora, é um grande projeto a ser divulgado. Aquela outra amiga, idem: seu corpo, nas plataformas, é peça erótica a ser devorada por milhares de olhos distantes e desconhecidos, uma peça viva, de epiderme clara e macia, com lingerie; um corpo digitalizado, para consumo majoritariamente masculino, vestindo a roupagem da nova liberdade.
Engano citar apenas duas pessoas conhecidas como exceção: há bilhões de seres digitais espalhados pelo mundo; quase todas as pessoas que conheço, da minha idade, tornaram-se seus próprios portfólios, suas vidas íntimas se confundem com um release publicitário. E eu, menos fútil, mais restrito, intelectualizado, me iludo ao acreditar que não me rendi: meu projeto é apenas mais pedante, um press kit mais ou menos poético.
§ A imagem serena e imperturbável de um Buda de gesso, límpido, novíssimo, na vitrine de uma loja. Daqui a muitos anos, estará carcomido pelo tempo, marcado por algumas quedas. No entanto, se manterá com a mesma aura: sereno, imperturbável, equânime a tudo. O jovem vendedor não tem a mesma feição: explorado pelo trabalho, abatido, rugas, olheiras, às vezes tem vontade de esquecer de si, por isso fuma e bebe todos os dias. A compradora do Buda, por sua vez, não tem a mesma aparência que a do vendedor: pele branca, corada, corpo desintoxicado, olhos brilhantes, cheios de vida. Tampouco tem a mesma feição do Buda, que agora o leva embrulhado em jornal, dentro de uma sacola de papel pardo: não sabe esquecer-se de si, é obcecada pela própria imagem, neurótica pelas aparências. Serenidade, imperturbabilidade, equanimidade a tudo: longe dos ricos, mais ainda dos pobres; nesta sociedade, é uma realidade de gesso.
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Abraços e até a farfalhada #5,
Felipe Moreno