Luz e tremor na planta dos pés
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1. Divagação sentenciosa, elasticidade imaginativa, suposição à beira da suspeição, a relacionar eventos extremos com formação cultural, geofísica com sabedoria ancestral, clima com cosmovisão, mas que ouso lançá-las, sim: povos originários, que aqui estavam antes de a América ser América, são, em sua quase totalidade, povos incondicionalmente aterrados, a despeito dos saltos oníricos, das excursões astrais e xamânicas; em contraste, o povo europeu (exterminador e colonizador dos originários, aliás) é, em abundância, um povo alado: a abstração, seja no espaço ou no exercício do pensamento, é o núcleo da sua formação e atuação.
2. O povo que habita, há milênios, o que chamamos Extremo Oriente — e, a partir daqui, me delimito a tratar, principalmente, do povo japonês — é, assim como os originários da América, África e Oceania, um povo aterrado por excelência, cujas especifidades derivam — aqui minha ousadia — da sua relação embricada e trágica com a geografia: o Japão e sua forte ligação com o solo, sua atenção com a terra (firmeza, pragmatismo, calma e constância, determinação, figurativo pés no chão) apontam à vivência desta gente com os tantos abalos sísmicos que sofreram e enfrentaram.
3. Abstrair é, também, expandir-se: não à toa, o homem branco, nos últimos cinco séculos, se alastrou pelo globo — sua expansão resultou no extermínio da biodiversidade. Tara por pureza, grave aversão à diferença e, sobretudo, vício pela noção do mundo (melhor) além deste mundo (pior), vício pelo duplo do mundo (de Platão à Igreja Católica aos transumanistas atuais): a civilização ocidental é o reinado de uma hipertrofia metafísica, em busca desenfreada por algum além (além-mundo, além-mar, além-planeta). Não há nada mais afrontoso a um europeu do que a noção de misturar-se, aqui e agora, no chão do mundo — e, daí, extrair alguma sabedoria. Pois, a partir dos pilares da sua cosmovisão, o europeu sofre de uma alergia fatal a qualquer coisa que remeta mistura, mundo, chão.
4. Mas retorno à suposta antítese dos europeus: a realidade aterrada dos japoneses, sua sabedoria telúrica. Abalados por tantos tremores de terra, tanta tormenta e racha sob os pés, o povo japonês poderia reagir por ressentimento e, assim, desenvolver, no eco dos seus graves sofrimentos geofísicos, uma cosmovisão, no mínimo, desconfiada da terra e, no limite, aversiva à terra; uma cosmovisão extrapolada do solo, direcionada ao além. Para a alegria do mundo, o devir registrou o contrário: a cosmovisão japonesa — um amalgama dos saberes xintoístas, taoistas, budistas e confucionistas — é a terna expressão da sabedoria e da graça da terra, do elogio e do cuidado à terra, da amabilidade ao solo.
5. Embora tenha, em sua doutrina, um pragmatismo clássico (as quatro nobres verdade, o caminho de oito passos etc.), o budismo, que nasce na Índia, ainda carrega marcas, mesmo que sutis, de uma pureza absoluta fora do tempo e da matéria: para a tradição theravada, o nirvana é qualquer coisa de perfeito que está além deste mundo. Com o tempo, porém, o budismo se espraia para a China, Coreia e Japão; assim, expande sua cosmogonia e doutrina, sobretudo após seu encontro e fusão com o taoismo chinês. O budismo chan (chinês) ou o budismo zen (japonês) figura, ao longo dos séculos (e a partir de eventos e personagens pontuais e transformadores, como o caso de Hui Neng, o Sexto Patriarca) uma impressionante subversão da própria noção de iluminação: para o zen, satori (despertar) nada mais é que um súbito clarão que, não raro, acomete o praticamente por meio da sua relação com o mundo, até mesmo o mundano, o ordinário, o banal — voltamos a Bashô e a rã no tanque, o monge e a pedrinha espanada pela vassoura etc.
6. Já o taoismo, que nasce na China e ecoa ao Japão, é, a um só tempo, abstrato e concreto, místico e imanente. Semelhante a diversas cosmovisões autóctones, o taoismo, além do mais, coloca o corpo humano, suas necessidades e funções, como manifestação inequívoca da criação sagrada: dão ao corpo o nome de órbita microcósmica, sendo a órbita macrocósmica a própria composição geral do universo que, em última instância, não apenas fazemos parte, mas a somos. Com a incorporação do corpo e suas pulsões na ordem da perfeição cósmica, as práticas sexuais, no taoismo, são exploradas, refinadas. Análoga à tradição tântrica, a sexualidade, segundo os mestres taoistas, desde os mais antigos, contém o potencial da realização, o tesouro do absoluto.
7. Com grande influência do zen, as artes e os costumes refinados da cultura japonesa manifestam o gosto, o prazer pelo chão: por tradição, as camas são baixas, a um palmo do piso (para os mais antigos, apenas uma esteira estendida no assoalho de madeira); ajoelhado ao solo, come-se em mesas igualmente baixas. Cosmovisão telúrica em corpo e alma: a alimentação, a procriação, o sono, os sonhos e o despertar (através da meditação sentada), ocorrem rentes ao chão.
8. Também as artes marciais do Extremo Oriente, na sua ampla gama de tipos, estilos e vertentes, expressam, perfeitamente, tal sabedoria telúrica, espécie de mística do chão. Originário de Okinawa, arquipélagos que, hoje, pertencem ao Japão, o karatê-do é uma das tantas artes marciais que se enriquecem com a prática de extrair a força do solo. No karatê, todo movimento, golpe ou atenção consciente deve estar condicionado, do início ao fim, à determinada postura física — firme, porém sem tensão —, na qual os pés estão firmemente plantados, cravados no chão.
9. Palavras do meu sensei de karatê, num treino de fundamento voltado à movimentação: “Cravem os pés no chão como se estivessem perfurando o solo. E imaginem que vocês têm que se equilibrar, firmes, num chão que está tremendo”. E tantas outras vezes, em diferentes ocasiões: “Mastiguem o chão com a sola dos pés; afundem os pés no chão; tragam a força do chão”.
10. As pernas e os pés do judoca Hidehiko Yoshida estavam tão firmados no solo do ringue que nem o jiujiteiro brasileiro Royce Gracie, o mais temido do cartel, invicto há tantas lutas, conseguiu desestabilizá-lo e levá-lo ao chão. Naquela noite, o judoca japonês havia se transformado numa árvore de mil anos, enraizada o suficiente para que nenhuma força bruta pudesse demovê-lo dali. Homem-árvore, estável e sereno, Yoshida venceu a batalha.
11. Jorge Zentner, argentino, artista e praticante zen: “Simbolicamente, para meditar sempre nos sentamos no chão; não há como ‘subir’, subir de posto; estamos sempre no primeiro passo. É uma forma de nos transmitir que o caminho do autoconhecimento exige humildade. Quanto mais cedo deixarmos de querer aprender alguma coisa, melhorar alguma coisa, mudar alguma coisa... melhor. A meditação é um exercício de humildade”.
12. Kodo Sawaki, notório mestre zen japonês do século 20: “Seus pés têm que se assentar firmemente no chão para não perder de vista o dia de hoje, este instante, o lugar onde você está e, acima de tudo, para que não perca de vista a ti mesmo. Praticar não é terminar as tarefas de limpeza o mais rápido possível. Se você não perder de vista a sua vida diária durante a limpeza, aí também você estará praticando. Praticar significa seguir em frente com um passo firme enquanto iluminamos com uma lanterna apenas a escuridão aos nossos pés”.
13. Seja no zen, seja nas artes marciais (o primeiro influenciou profundamente o segundo), a dinâmica que envolve base, postura, respiração e que, por efeito, tonifica clareza, sabedoria e contentamento, é a mesma. A força vem do solo; a energia penetra através da planta dos pés e ascende ao corpo, até o topo da cabeça. É o baixo ventre quem, no entanto, catalisa, metaboliza e equilibra essa energia. É no baixo-ventre que está localizado o ponto central do equilíbrio, da força e do contentamento que, seja no zen, seja nas artes marciais, chamam de hara, ou tanden. Região da vitalidade primordial, do cordão umbilical, tanto no zen, quanto nas artes marciais, aprendemos a respirar com uma inspiração comum e uma expiração longa, não pulmonar, mas abdominal, como se o ar pudesse deslizar até o hara e, ali, se assentar.
14. Paulo Leminski, samurai-malandro, no livro A hora da lâmina, ensaio Corpo não mente: “Ao tentar converter superiores da seita zen, com a frase básica “salve tua alma”, [Francisco] Xavier [missionário católico que aportou no Japão no século 15] esbarrou num obstáculo intransponível: os monges zen não podiam conceber que a alma fosse uma coisa que a gente possuísse e pudesse ter um destino distinto do corpo, suas peripécias, misérias e esplendores. A arte de um judoca e de um carateca não é ‘una cosa mentale’, como disse Leonardo sobre a pintura. É essencialmente unitária, anterior ou posterior à dicotomia corpo/mente que impregna, sub-repticiamente, todo pensamento ocidental de Descartes para cá. As origens desse divórcio no indissociável são, claro, de natureza religiosa: a mente do racionalismo ocidental é a filha leiga da alma salvável no cristianismo”.
15. A crise da Terra, o colapso da biosfera (antropoceno, sexta grande extinção em massa, ou outro nome possível), não remonta, profundamente, às origens da nossa hipertrofia metafísica que, na tal busca desenfreada por algum além (além-mundo, além-mar, além-planeta), baniu o telos da terra, as tantas possibilidades de espiritualidades terrenais, de místicas da imanência? Não seria o judaico-cristianismo-greco-romano-científico-moderno a matriz do distrato atroz do animal humano com a Terra? A propósito, a arrogância ocidental está diretamente ligada ao fato de sua cosmovisão, não aterrada, exigir a incansável expansão, o progresso, o alçar voos. Do contrário, toda relação com o chão, com a terra, denota humildade. Com os pés firmes no chão do mundo, haveria tamanha sanha por megaexpansão, domínio do outro e extermínio da diferença?
16. A luz também vem de baixo, de onde pisamos. Louvor à Terra é o nome de um dos livros mais bonitos, e o mais autobiográfico e literário, do filósofo Byung-Chul Han, sul-coreano, por sinal. Direcionar a atenção ao chão, buscar na sabedoria telúrica a expressão de um outro existir, é uma forma de poesia, de política, de filosofia. O refinamento da atenção e da amabilidade direcionada à terra, em busca de sentido profundo, carrega o potencial de uma reespiritualização. Um reespiritualização que, além de imanente, é prática, a priori — assim, é ativa e contemplativa a um só tempo.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #68,
Felipe Moreno
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