Karatê: aspereza, ternura, clareza

1. De origem milenar, complexa, o karatê é resultado da confluência de algumas das mais antigas artes marciais do Extremo Oriente, mas cuja base, muito provavelmente, é o kung fu chinês. Surge em Okinawa (arquipélagos nas cercanias de Coreia, China e Japão), ali se lapida e se ramifica, em diferentes estilos, ao longo de centenas de anos — como arte secreta, clandestina. Somente no início do século 20 é que aporta e se formaliza em terras nipônicas. Num estalo, então, o karatê dá um salto, sistematiza-se e se expande. Torna-se a arte como hoje a conhecemos no Ocidente.
2. A partir do pós-guerra, a arte de mãos vazias, como o karatê passou a ser designado, se espalha e ganha grande popularidade pelo mundo. (Quem, entre as décadas de 80 e 90, não praticou ou não teve um irmão ou primo que, na infância e/ou adolescência, fez karatê? O fenômeno midiático de Karatê Kid etc.). Hoje, para o Ocidente, é uma arte marcial facilmente reconhecida, porém menos praticada que outras, como o judô, jiu-jitsu, muay thai, boxe.
3. A despeito da banalização dos seus princípios e ensinamentos, a tradição é fortíssima, e não é difícil encontrar suas raízes: ainda tem firme assentamento no terreno cultural do Extremo Oriente, ou é como um fio que percorre a fundo, atravessa o modo de vida e o código de ética dos antigos samurais japoneses e chega às principais religiões desta terra — xintoísmo, taoismo e budismo, principalmente, em sua orientação zen.
4. História vasta e profunda, ares de religião ou exercício prático de uma religião maior: confundir o karatê como mera luta ou esporte é engano, desrespeito. A coisa é mais séria e quase todos os seus praticantes sabem disso: encarnam, em menor ou maior grau, os aspectos da sua antiga liturgia. Pois o núcleo dos seus ensinamentos, enfim, nada difere da ambição das principais religiões: possibilitar o refinamento psicofísico, desenvolver, lapidar o ser humano pela chave espiritual.
5. Refino do bruto, lapidação da ferocidade, na ponta dos dedos dos pés e das mãos, no plexo solar, no abdômen, na região do quadril, centro de equilíbrio do corpo. O karatê brilha no balanço entre o primitivo e o primoroso.
6. Três anos de prática e estudo e sei, agora, que o ensinamento elementar do karatê é sobre a sutileza da atenção: percepção consciente, aumento de consciência clara, cristalina. Sobre força que não é qualquer, mas produção de força vital cujo núcleo de emanação repousa no baixo ventre, cerca de três dedos abaixo do umbigo. Centro de energia vital que os japoneses chamam de tanden, ou hara. Num treino pesado, transpiramos até o encharcar — e a transpiração de qualidade deve ser reflexo de uma respiração consciente, em consonância com os movimentos. Inspiração curta e leve, expiração longa e forte.
7. Braços e pernas são chicotes (ágeis e flexíveis), não tábuas (duros e lentos). Braços e pernas são chicotes, mas os pés são como raízes expandidas e fincadas na superfície onde pisamos. Extraímos a força do chão, do tremor telúrico, fundimos esse vigor terrenal ao corpo: a força sobe pela sola dos pés, acessa o baixo ventre e reverbera, em chicotadas, por pernas, braços, punhos, dedos, cotovelos.
8. Diante do risco e do perigo, da aparição da tensão ou da iminência da tragédia, minhas pernas já não tremem: são magras e cumpridas, mas estão bem postadas no chão. Meus joelhos, que sempre foram frágeis, combalidos, já não rangem: se movem, ligeiros e livres, sem dor. Méritos da prática árdua, bênção marcial: karatê, afinal, é a arte dos pés em conexão com o solo, de movimentos inferiores rastejantes; a arte da antecipação pontiaguda.
9. Um corpo alongado vale mais que um intelecto avantajado. Pois um corpo alongado é um saber de fluidez e fibras, que melhor se adere aos movimentos basais da vida. Um corpo alongado produz um intelecto projetado à clareza e à serenidade. Um corpo alongado destrava algumas armadilhas da verborragia narcísica, dissolve camadas da hipertrofia mental. Por essa razão, passei a suspeitar dos pensadores sedentários: a partir de um corpo contraído e flácido, que força de saber produzem? É preciso tônus, vigor, clareza — também no pensamento, nas palavras.
10. É um faixa preta, cerca de cinquenta anos, praticante desde os doze. Mostra, discretamente, o valor do karatê além do tatame: se compromete com funções básicas, como lavar, limpar, cuidar. Exercícios básicos, porém raríssimos de serem cumpridos por machos padrões, como bem sabemos. Por isso, regularmente, chama a atenção. Chega no dojô antes de todos e, vez ou outra, mete as mãos em baldes, torce panos, varre pisos, se atenta à sujeira das janelas etc. Sem dizer palavra, apresenta a validade de uma arte marcial para além da aplicação de um golpe. Diz um sensei: “Tiramos os movimentos, a sequência de golpes. O que sobra? Uma conduta, um modo de vida, uma ética. O tutano da nossa prática, disposto no dia a dia”.
11. O karatê, como nenhuma outra prática é capaz, revolve minhas entranhas, mobiliza uma força antiga, de primeira ordem — força que, paradoxalmente, está ligada ao pavor. Nos últimos minutos de um treino exaustivo, no máximo da entrega física e mental, numa garra animalesca, luto com os adversários mais sutis e profundos: o pavor da finitude, do absurdo, do caos. Aqui, minha coragem consiste em admitir o pavor, mediante, somente, ao meu embate frontal com ele. Admitidos e confrontados, minha força e meu pavor, enfim, tomam uma única forma: tornam-se a inominável expressão composta por clareza, vitalidade e, principalmente, serenidade, uma força para lá da força, coragem mais além da coragem. Um estado intensíssimo de pulsação que, no fim, acalma.
12. O karatê se reflete na minha escrita. Se cada golpe deve ser aplicado como o último, cada fragmento deve ser escrito como o derradeiro. Se o movimento precisa ser certeiro e pontiagudo, também assim meu texto. Se o eco da aplicação final deve ser o do tremor e do estardalhaço, também minhas palavras.
13. Alguém, pela primeira vez, me pergunta por que pratico uma arte marcial. Minha resposta é pretensiosa, mas do coração: para melhor acessar a poesia e preparar meu corpo para os dias que virão.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #90,
Felipe Moreno
>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<