Intuições sobre o haicai do nosso tempo
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1. Haicai: sutilíssimo espanto diante de todo e qualquer fenômeno — mas com preferência aos reles e corriqueiros.
2. Os haicais surgem com mais vida cedo da manhã, logo quando me levanto. Às vezes nos quinze minutos de crepúsculo, quando faço uma pausa das atividades. Ou no fim do dia, minutos antes de me deitar. No agito da tarde, meus haicais adormecem. E vêm à tona assim que me permito entrar em tal estado de consciência afinado — o mesmo estado de consciência de quando tentamos passar a linha pelo estreito buraco da agulha.
3. Acho que é isso mesmo: fermentamos haicais quando corpo e mente se esforçam para passar a linha pelo estreito buraco da agulha.
4. Todo haicai é, necessariamente, anticapitalista. Impossível imaginar um haicai que celebre qualquer aspecto da filosofia liberal e da sociedade de mercado. No entanto, haicai é água: flui, permeia, vaza. Por isso é capaz de abarcar a realidade do mundo industrial (e pós-industrial) e exercer sua plenitude poética até mesmo no seio — e através dos meios — da sociedade neoliberal. Haicai é água.
5. Na era da sexta extinção em massa, o kigô, junto com o clima do planeta, se desequilibra, convulsiona, torna-se, com mais facilidade e frequência, evento extremo. A indesejada era dos kigôs acalorados, intempestivos, agressivos.
6. O legado da tradição do haicai no antropoceno será o de apontar para as aberrações e desastres humanos, sem se ressentir. Apontar o erro de rota, o equívoco da cosmovisão antropocêntrica, através da imagem da flor escassa, da abelha em solidão, do verão flamejante.
7. Não ressentir não implica em consentir: o haicai no antropoceno também deve denunciar os crimes e mazelas desta civilização humanocentrada, adoecida até os nervos.
8. A base espiritualizante do haicai, que sugere o desprendimento da fantasia de uma identidade autocentrada, a fim de se abrir à corajosa e terna experiência da diluição no mundo, é, ela mesma, instrumento poderoso capaz de aplacar os delírios da nossa civilização humanocentrada.
9. Em estado refinado, haicai é satori (iluminação súbita). Satori em decorrência do acionamento dos órgãos dos sentidos a nível fotográfico. Órgãos dos sentidos como lentes translúcidas a captar o estado das coisas no aqui-agora. A natureza da experiência de iluminação de Bashô, fundida dos fenômenos do lago, do sapo e do barulho da água, é a mesma da do monge que, enquanto varria o chão da cabana, realizou-se ao ouvir o som de pedrinhas chocando-se com a parede. Haicai é um satori à mercê do que ocorre no mundo neste exato instante. Experiência de uma simplicidade acachapante — e que, de tão sutil, geralmente nos escapa. Praticar é preciso.
10. Quanto mais zazen, mais haicai. Quanto mais karatê, mais haicai. Quanto mais flanância, mais haicai. É fascinante perceber que a anatomia e o movimento — espécie de mecânica metafísica — de todos estes exercícios são idênticas. Zazen: consciência na inspiração, expiração e no interstício imóvel de uma coisa e outra. Simples golpe de karatê: da base fixa, o movimento que se desloca com velocidade e, no limite, libera força, pressão, impacto. Flanar: dinâmica de um pé suspenso, outro firmado no chão, e o ligeiro, quase imperceptível, encontro de ambos, no solo, no interstício do movimento. E mais: o caminhar, a realidade do entorno e a impressão gerada pela fusão das partes. Haicai: do uno estático (primeiro verso), à ação e movimento (segundo verso), à síntese acolhedora, resignada (terceiro verso). Zazen, karatê e haicai. Cada um com sua mecânica íntima de tese, antítese e síntese. Matemática cósmica do três. A dualidade que visa a unidade. A unidade eterna formada a partir da dualidade.
11. Haicai é o mais sofisticado voto de celebração da vida imanente que tive a felicidade de conhecer e praticar. Nietzsche, se o tivesse conhecido e praticado, talvez anunciasse haicai como amor fati.
12. No sonho desta madrugada, um sopro sugere que haicai é poiesis de chão, humilde, singela; que haicai é joia telúrica, sopro puro da beleza imanente. Porque tudo é imanência. E tudo é impermanência. Em solo rico, bem cultivado, o haicai está livre de toda mácula.
13. Até que tudo que se escreva — do haicai ao ensaio — seja haicai: impressão imediata do que se vive. A escrita sem verdade, sem fechamento, sem sistema. A escrita do ato.
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Felipe Moreno