(Im)posturas autobiográficas

§ Buda me convence de tudo ou quase. Ainda assim me assombra, pela intensidade do seu ascetismo — um ascetismo que não posso imitar. Em contrapartida, por me convencer de tudo ou quase, pelo fato de eu acreditar que ele tenha experimentado uma realidade para além do imaginável, acessado uma condição da vasta consciência que só uma meia dúzia, ao longo do tempo, conseguiu acessar, também me faz desdenhar, às vezes menosprezar os nomes mais proeminentes e sisudos da filosofia ocidental — estes que, sem mística, só despejaram no mundo doutrinas frutos de uma míope especulação, jogos de linguagem, exercícios de lógica, axiomas forjados pelo vão raciocínio, teoria em cima de teoria, a fim de melhor acomodá-las numa progressão dialética tão esculpida pelo intelecto que beiram o inorgânico.
§ Porque considero que o estilo deve vir antes do conceito — que o estilo é, propriamente, a imagem do conceito —, não posso ser lacaniano, ou deleuziano, menos ainda heideggeriano: três autores de verborragia excêntrica, de escrita cifrada, de um hermetismo na fronteira da arrogância letrada ou da insanidade filosófica. Escritores que criaram seus jargões sisudos para mascarar suas deficiências poéticas?
§ Que deus me livre da pretensão de escrever a análise ou a história de qualquer coisa que seja; que me livre da tentação de teorizar, de forma profícua e abrangente, sobre qualquer área do conhecimento humano. (Do diagnóstico e prognóstico do mundo, do político à metafísica, já temos páginas suficientes. Na verdade, sofremos o excesso da teoria.) E que me reste apenas o resíduo da poesia dos fragmentos: pequenos estalos nas coisas, sobre as coisas, estalos seguidos de estalos, chispas que produzam nada mais que assombros, ecos e perfumes — mesmo quando o assunto é deus, política, colapso climático, distopia tecnológica, as características da minha cidade, uma nota autobiográfica no extremo do banal, de baixíssima relevância filosófica, ou os haicais que pinço à beira da calçada.
§ Aos oito anos, o alívio por ter me livrado das garras do meu pai biológico; aos quinze, o desafogo por ter conseguido me desprender, tão subitamente, da dura vigilância do patriarca metafísico. E ter vivido, dos quinze aos vinte e cinco, os riscos e as alegrias de uma completa anarquia cósmica: sem tutor paterno, desde a casa até os céus, flutuei, eufórico, sobre o desregramento de um enorme nada.
§ Devo tudo às minhas obsessões: da capacidade de estar envolvido, anos a fio, com árduos exercícios acrobáticos e meditativos (que me fazem parecer um asceta urbano), às manias dos pequenos e variados rituais supersticiosos, irracionais e esdrúxulos (que me tornam semelhante a um padre complexado).
§ Fiel ao cotidiano, fechado com as obrigações do dia a dia: é comum que uma segunda-feira me seja mais agradável do que uma sexta.
§ Não abarco a fantasia de uma vida distante dos desconfortos; tampouco sou perseguido pelo fantasma — hoje, por mil fatores, ostensivo — de uma existência à beira do surto. Forjei minhas imunidades concretas: lavo louça e disperso os pensamentos intrusivos; treino o abandono de outras intrusões fantasmagóricas, fome de status: por exemplo, a da falta de ainda não ser a imagem daquilo que cobiço nos outros; respiro fundo e me estico, saio para caminhar; dou golpes ligeiros no ar e me divirto no combate com o adversário imaginário: eu mesmo.
§ Embasbacado com o céu limpo de inverno — de um azul tão doce, e a lua crescente, prateada. Dou com os olhos no fundo da sua amplidão e lembro da morte. Ainda lidamos muito mal (talvez pior que nunca) com o evento fatídico que encerra nossas vidas. Claro, é um episódio terrível, o maior susto, a superar o do nascimento. Mas o frio do fim da tarde, o azul, a amplidão e a lua me comunicam — para me acalmar, me alegrar — que trata-se de um terrível de outra ordem: terrível extasiante.
§ Não fosse a aguda consciência da morte (de todos, de tudo, mas sobretudo a minha), jamais teria me colocado a escrever uma única linha. Minha relação com a escrita seria a de redigir e-mails, mensagens e listas de supermercado.
§ Os místicos já não devem me perturbar com seus ascetismos extrapolados do mundo: serei espiritual à minha maneira mundana, perfeitamente imperfeito.
§ Já que tudo é exercício, prática, não posso esquecer do treino de perambulante, haicaísta, zen errante: aguçar os sentidos até que irrompam os lampejos sem verbo. E que destas experiências restem haicais, fragmentos e outros perfumes.
§ Repetir as mesmas coisas brandas do cotidiano, na linha firme da continuidade, indesviável, ação atrás de ação, apuradas, concentradas, liturgia pequena de quem se contenta com o pão da segunda-feira e a atenção dada aos bem-te-vis no fio de energia: fluidez e, então, lucidez.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #101,
Felipe Moreno
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