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September 29, 2025

Haicai nas franjas do não-eu e do não dito


Conheci o haicai por volta de 2016. Desde então, vivo o período de maior imersão e dedicação sob seu signo, sua egrégora radicalmente diminuta e singela, expressão poética do perto e do pouco. Saio para caminhar ou pedalar embaixo da estrela do haicai; acordo e vou dormir embaixo dessa estrela. Também é tema da minha pesquisa de mestrado: haicai como brilho do instante, poética do não-eu e do não dito. O caminho é sem pódio, sem ponto final. Aos poucos, de colheita em colheita, disciplinado, me torno um pouco mais bashoniano (Matsuo Bashô), um pouco mais issaniano (Kobayashi Issa).

Comunidade de ensino e divulgação de poesia, a escola da palavra me deu a oportunidade de conversar mais sobre haicai e, um pouco além, sobre haibun — esse gênero entre a prosa curta e o haicai que, com muita frequência, compartilho nesta niusleter.

Pela segunda vez no ano — agora, mais ampliada que a primeira —, a oficina “Clarão das frestas: lições de haicai e haibun” pretende discutir e praticar essas duas formas poéticas em nossos contextos culturais. O ponto de partida é a minha plaquete de nome quase homônimo, que saiu, em dezembro passado, pela Círculo de Poemas. A oficina, online, tem início na terça-feira, 07 de outubro, às 19h. As inscrições ainda estão abertas e você pode fazê-la por aqui.

Enquanto isso, ensaio, abaixo, um pouco do que pretendo discutir mais ao final dos encontros: a perspectiva do haicaísmo, assentado no cotidiano, como exercício de cuidado de si e ressignificação de sentidos sobre as vidas não humanas.


§ Mais que mero fazer literário, o exercício haicaístico se pretende, pela via estética, a uma tal experiência religiosa. O caminho dessa singela liturgia quer, através do jogo de signos, abrir a percepção para o reencantamento do pequeno mundo circundante — plantas, aves, insetos, a miríade de interações e tonalidades dos fenômenos, a dança da interdependência dos seres vivos —, em detrimento de qualquer marcada noção de identidade humana. Em tese há, para a filosofia e confecção do haicai, o esforço pelo desfazimento de um ensimesmamento: percepção, portanto, que se lança à contemplação e captura das infinitas coisas que emergem em banais belezas sob a ordem terrenal. Sua radical outridade poética tende à refutação de qualquer antropocentrismo, cuja identidade é exclusiva, fixa e superior, porque sabe, também, que todo “eu é um outro”: o eu, no haicai, é o outro da interdependência de tudo o que vive, humanos, não humanos e inanimados.

imensa calma —
penetrando as rochas
o canto das cigarras
(BASHÔ)


§ O exercício do haicai, em último caso, fareja a mudez, quer dizer, aponta para o não dito: é tentado, em serenidade e doce alegria, a calar o verbo e precipitar-se, assim, sobre o lampejo da experiência não verbal. Os bons haicais, cuja pessoalidade e o ruído são mínimos, ecoam até que sobrevenha a sensação da presença do silêncio. Provar das palavras para experimentar o não dito, a mudez, o silêncio. Um famoso conto zen ilustra essa dinâmica. O monge questiona o mestre sobre a razão de o darma, que está além dos termos, ser referido pelos termos (sutras*). O mestre responde-o: “As palavras são como um dedo apontando para a Lua; cuida de saber olhar para a Lua, não se preocupe com o dedo que a aponta”.


§ Uma dupla aparição ocorre na confecção do haicai, na sua filosofia. De fato, mantém-se o exercício do desfazimento do ensimesmamento, cujo objetivo é o farejamento da experiência de mudez, o alcance de um lapso de silêncio. Paralelamente, a intenção é, também, realçar a vivacidade do que existe à volta do poeta — e, dessa maneira, antes do dito silêncio, o haicai abre palco ao protagonismo das linguagens proferidas pelos não humanos: demonstra que antropos e linguagem não gozam uma só exclusividade, pois também os grilos e as rãs falam, se comunicam, compartilham dos seus próprios sistemas semânticos. Indica, portanto, que o império da linguagem não é humano e sequer é império: também as flores e os insetos cochicham. Pensar o contrário é defender, talvez na fronteira última, o primado antropocêntrico que faz da linguagem nosso bem cativo e que, ao mesmo tempo, nos torna soberanos em relação às outras espécies. Mas a fauna e a flora não têm apenas algo a nos dizer: elas já dizem, antes e a despeito de nós, entre si — linguagem polifônica, musical das multiespécies.

O mar escurece
a voz das gaivotas
quase branca
(BASHÔ)


§ Haicai é a poesia que habita a zona limítrofe de, ao menos, duas emblemáticas negatividades: a do não-eu e a do silêncio. Preceito de Bashô, a fim de marcar o exercício do eclipsamento da identidade e da interferência humana no poema: “Fale das coisas como elas mesmas falariam se pudessem”. Quanto ao farejamento do silêncio, onde encontramos suas características? A relação entre haicai e silêncio se estabelece, em primeira ordem, pela própria estrutura de mínimos elementos do poema. Há tão poucas palavras num haicai que é como se este, no fim, dissesse quase nada, como se resvalasse, de saída, as franjas do não dito e do silêncio — ao passo que, contraditoriamente (eis uma de suas graças), dissesse tudo, do seu ponto de vista, claro, não ubíquo, ou seja: dissesse tudo o que é captado naquele singular enquadramento perceptivo, naquele singular instante. Puro paradoxo: o haicai emerge, ao mesmo tempo, como o quase nada e seu próprio tudo, fragmento mínimo e um tipo de absoluto.


§ As palavras são rastejantes, os versos, brevíssimos; o sentido do poema é o descanso dos sentidos intelectuais; um lampejo por si, não um comentário, não uma descrição, mas um estalo. Poética que estala, num movimento ligeiro e curto, e cala.


A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.


Abraços e até a farfalhada #107,
Felipe Moreno

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