
1. Intuo uma relação harmoniosa entre o samba e o haicai. Vivo a ternura e a força dessa fusão quando, ao escutar samba, recebo haicais; ou quando termino de escrever um haicai e sinto vontade de escutar um samba.
perto, sol poente
samba bom e antigo
sábado quente
2. Às vezes fecho os olhos e imagino ideogramas japoneses num fundo verde e rosa da Estação Primeira de Mangueira. Como se fosse perfeitamente possível a união entre Cartola e Bashô, João Nogueira e Yosa Buson, Nelson Cavaquinho e Kobayashi Issa. Como se muitos kigos de verão e primavera pudessem cair nos braços de Dona Ivone Lara, Alcione, Clementina de Jesus. E por aí vai.
caquis de Shiki
e craques canarinhos —
arte vem dos pés
um acorde, um golpe
mente na ponta dos dedos —
cavaco e karatê
3. Em comum para ambas as artes — ambos os caminhos —, reside, como elemento primordial, a estética da simplicidade. Simplicidade como refinamento do bruto, alquimia da cafonice, aparas do excesso, transmutação da petulância, esquiva da grandiloquência. O trato doce, qual o trabalho de um marceneiro, a partir de um forte aspecto rústico da vida. A sábia combinação entre firmeza e delicadeza, alegria e melancolia.
outono doce
cheio de presente —
caqui e agora
4. Pois minha intuição sobre a singela fusão entre haicai e samba, por fim, remonta a um sentimento próprio de alegria e melancolia. A melancolia atrelada a uma nostalgia de tradição, daquilo que despontou quando não estive, e só posso sentir, imaginar como foi; daquilo que vivo apenas por reflexo, resistência, reavivamento. Nesta época, quem não? Nosso tempo é de ruídos e estilhaços. Sabemos, sentimos, que é um tempo eufórico, aberto ao caos ou ao nada. Mais a fundo, também sabemos e sentimos que é um tempo melancólico.
o sol caindo
enquanto caminho e canto
um samba triste
Nelson Cavaquinho
dedilha de dó a dor —
choro baixinho
5. A alegria do sincretismo, em nascer em terra de tantos sincretismos. Haisamba? Ou, melhor, sambacai? A alegria de saber que, mesmo diminuta, resistente, às voltas da preciosidade e do preciosismo, tive o privilégio de (me) encontrar — e mergulhar — (em) tais tradições.
filtro de barro
vaso de samambaia
iluminados de Brasil
zazen e paçoca —
quanto menos de mim
só amendoim
6. A dimensão trágica da vida; e a dimensão da beleza da vida. Da tragédia, desponta a beleza. Dos haijins que viveram catástrofes naturais, a penúria, a tragédia familiar, e viram na vida a impermanência de todas as coisas; e, da impermanência de todas as coisas, o singelo louvor à vida. Dos sambistas que viveram o mando e a chibata, o eco do mando e da chibata, a escassez, o desamparo; e, da dor e do desamparo, juntaram forças entre eles, através da carne e do batuque, dos morros e dos santos. A força e a ternura. Assim é o haicai. Assim é o samba. Por isso um bom samba dá um bom haicai. E um bom haicai dá um bom samba.
quantos satori
sonoros, verde e rosa
ao escutar Cartola
um bom arranjo
bravura e sorriso —
o samurai samba
Atrair inscritos em niusleter é trabalho de garimpo, manual e orgânico. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique, e me ajude a continuar na experiência de escrever por e-mail.
Abraços e até a farfalhada #43,
Felipe Moreno
