Haicai e a luz da banalidade, da repetição, da hipnose
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§ Se existe prosperidade e abundância fora da simples experiência cotidiana, não a verifico e, no limite, desconfio, não a contemplo.
fundos da pizzaria —
o pardal bica uma borda
e some no ar
§ A vida que insiste, resiste, persevera sobre a hipermanipulação humana, massiva e violenta (a vida dos bem-te-vis e dos pombos, das lagartixas e dos papagaios silvestres), é a vida que faz as mesmas coisas, que se repete, acura, refina — e cai no fluxo. Meu haicai, como o tradicional, bebe da fonte não somente da vida que brota, selvagem, por todas as frestas; mas também se espelha na lei da precisão e repetição do mundo natural: as estações, por si, não alteram sua ordem, e as aves, se bem adaptadas em seu habitat, adormecem e despertam nos mesmos horários.
§ Uma forma de hipnose, de perda do peso de ser um si mesmo? A repetição. Todo delongar-se, constante e metodicamente, no que quer que seja, desabrocha na fluidez, numa corrente que desmancha o si mesmo no trânsito da própria vida, com todas as coisas que existem.
§ As coisas fáceis e simples que encontramos na natureza ocultam sua extensa e árdua história da repetição do mesmo. Repetir é acurar e, em estágio avançado, é hipnotizar-se.
céu de verão —
onde a nuvem se ausenta
um pássaro preto
§ Diversidade é organização, caos é disciplina.
§ A dinâmica do receber/fazer haicais? Feito pombo ou galo de bico ligeiro, pinçar das frestas da cidade (curral transbordante de coisas humanas), o que não é fruto da cidade — a vida selvagem que, a despeito das toneladas de cimento, do excesso de fumaça, vinga nas próprias frestas desse curral antropocêntrico. Então unir, contrastar, fundir o que é da cidade e o que não é da cidade.
cone de trânsito —
o pardal chega e caga
bem no buraco
§ Meus haicais não são do caos humano, mas cintilam nas frestas desse caos humano. As cintilâncias das frestas da cidade, das rachas do asfalto. E a indistinção entre o puro e o impuro.
arde o sol da três —
o pino de cocaína
jogado no asfalto
§ Dos tantos afetos exclusivamente humanos (quase todos de angustia), talvez seja a monotonia o mais intrigante. É provável que estejamos isolados em nosso tédio, sem correspondência com outras espécies. Pois o que nos é experimentado como tédio ou monotonia talvez seja, para um chimpanzé ou bonobo, contemplação, meditação, deleite no silêncio, plenitude na quietação.
o telhado branco
sob o azul sem nuvens
e um gato bege
§ O que rotulamos como mania de velho é, simplesmente, a alegria do hábito, o contentamento pelos próprios e pequenos ritos que se forjaram na latência, paciência e lapidação de seis ou oito décadas de existência. Ao contrário do velho burguês e extravagante (à lá Silvio Santos, por exemplo, que é um velho com violenta intolerância à velhice), o velho tradicional e simples, anônimo, faz seu pacto de amor e cuidado com plantas, cães e gatos. Por essa razão, talvez, nos emocionamos mais com a cena de um velho, no seu cuidado com uma planta, um cão ou um gato, do que a protagonizada por um jovem ou adulto. Destrambelhados, o jovem e o adulto, por regra, estão dissociados do reino da alegria cotidiana. No oposto, o velho, a planta, o cão e o gato têm, em comum (e em comunhão), a destreza do banal e do cíclico: afundam-se na frugalidade cotidiana, de forma que esta se torna análoga à experiência de uma vida eterna.
§ A senhora corta as unhas, há tantos anos, todas as segundas-feiras, com o mesmo cortador, da marca Unhex, modelo dos anos setenta; e o guarda no mesmo estojinho, colocado na mesma prateleira, detrás do mesmo espelho (hoje riscado, desbotado) que refletiu, sem falha ou atraso, a marcação do tempo, das rugas desta senhora, vivente da silenciosa alegria de ritos ordinários. Sabe que, a essa altura, para além deste modo de vida, nada é tão seguro, nem digno, nem válido de se viver.
livre da angústia
sob esta enorme figueira
de quinhentos anos
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #72,
Felipe Moreno
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