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§ Quase dezoito: o sino da catedral prestes a soar. A duas quadras dali, aglomerado de gente ao redor do poste de alumínio. Oito de braços cruzados; nove com fones de ouvido e a face envolvida pela claridade agressiva dos celulares.
tédio no ponto:
mais um dia, o ônibus
não pontual
§ Faz frio, mas o rapaz, cara amassada, parece que não sente: camiseta desbotada, calça folgada, chinelos. Na calçada larga, rasteja com seu filhote, cara amassada e pouco frio, como o pai, ainda que sem vínculos genéticos: um buldogue francês. Faz frio e a senhora sente: três casaquinhos de tricô e, mesmo assim, encarangada, braços cruzados. É guiada pela filha, que vai à frente, tem pressa, pouca paciência. Na calçada larga, a senhora aperta o passo, até que cruza o caminho de pai e filho. Para e chama a filha: senhora simples, afeita a vira-latas, nunca tinha visto um buldogue francês tão de perto. Expressão de quem vê um bicho exótico: curiosidade e graça. Como animais que interagem apenas por gestos, agora estão os quatro — rapaz e buldogue, senhora e filha — estacados na calçada larga.
o grunhido
do buldogue francês
a risada da senhora
§ Mesmo sem comer carne há anos, ainda sinto prazer com o cheiro de bife à milanesa que vem dos fundos da cozinha do bar-lanchonete, atravessa o ambiente e invade a calçada, por onde passo, às 11h23, nesta sexta-feira, fim de agosto, 17 graus. Inverno é estação que aguça aromas. Na esquina seguinte, o perfume de uma senhora, nostálgico, que lembra minha avó ou mesmo minhas tias, cruza meu caminho.
clima ameno:
o vento transporta cheiros
ao meu flanar lento
§ Fechada e fantasmagórica, a casa noturna, durante o dia, emana a ressaca das coisas inanimadas. Passar em frente é como ser sugado por cheiros vencidos, sensações curtidas. Reabrirá às 20h, para calibrar, com som, fumaça e etílico, a calçada que, agora, 13h27, só aceita fluxo, sobriedade e compromisso.
na esquina
constelação de bitucas
e cheiro de urina
§ Há muitos ônibus, pontos e terminais nestes haibuns. E aqui estou, mais uma vez: no ponto de ônibus. Em Florianópolis, muita espera, sempre. Para a gente sem pressa, momento de tédio e preguiça; para pessoas apressadas, tempo de aflição e má respiração. O ponto de ônibus é uma espécie de panóptico livre para quem quiser usar. Eu o uso, sem parcimônia. Daqui, flagro tudo com olhos densos, derramados de um lado a outro. Atrás de mim, mais distante que nunca, o sol, olho irradiante e amarelo, metapanóptico.
de costas para o sol
e o sol, longe e fraco
toca a nuca
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Abraços e até a farfalhada #29,
Felipe Moreno
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