§ Escolher entre uma compra de mercado ou feira, que me renderia, pelo menos, vinte e cinco refeições, ou um único almoço no aeroporto. Sequer é uma dúvida, apenas comparação: não sei em que drástica e esbanjada ocasião eu despenderia dinheiro num almoço de aeroporto. Há uma feliz afirmação em ser assim, meio pobretão, meio pão duro. Romantização e tentativa de imitação do lado árduo da vida de velhos poetas? Acho a coisa mais nobre do mundo o fato de Mario Quintana ter passado os últimos dias da vida num quartinho de hotel, só e contente. Mais publicitário que poeta, panfletário que esteta, poetizo meu estado meio pobretão, meio pão duro, nessa brincadeira quase de mau gosto — chamo isso de frugalidade. Quanta bobagem.
alegre e roto
no aeroporto suntuoso
minha barriga ronca
§ Na fila de embarque do voo, três homens chineses, à minha frente, conversam efusivamente. Mandarim com sonoridade e ritmo interessantes, agradáveis; mais do que o inglês estadunidense, rastejante e pastoso. Ao lado dos chineses, um playboy todo montado, tunado. Seus dentes são os mais claros que já vi na vida: um sorriso de porcelana fluorescente. Uma coisa esquisitíssima.
chineses cantam
e o sorriso do playboy
feito lâmpada branca
§ No assento do avião, um paulistano médio, loiro, elétrico, manda áudio de WhatsApp: picuinhas de trabalho, em tom formal, enquanto o pé esquerdo, nervoso, cisca o carpete. Na bolsa de redinha da cadeira da frente, duas embalagens rasgadas e vazias: higienizador Giovanna Baby e chocolate importado 55% cacau. O avião começa a subir e o paulistano, agora de fones de ouvido, acaricia o bigode.
atenção, decolagem —
primatas de gadgets
vagando no ar
§ Da janela do avião é que podemos contemplar o assombroso feito humano de arrasar biomas, cravar no verde das florestas o cinza das nossas sólidas edificações onde se empilham as exclusivas necessidades humanas, onde os selvagens não são convidados, e onde, aos olhos da vida, nada valem. Vista de cima, com as lentes à luz do primordial, toda cidade é um tapete de nadas. Mas não o mar, essa uniformidade sem fim, tapete plácido, ora verde, ora azul.
asa do avião
chacoalha, estremece, paira
sobre o azul atlântico
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #64,
Felipe Moreno
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