Haibuns de outono
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§ No asfalto, de meias pretas, jeans. O senho ferve. Por que escolhi vestir isto? Outono escondido por detrás do verão, tímido, ainda fraco. O outono demora a chegar. Além do mais, estou sem dinheiro, à deriva, nesta cidade paradisíaca e precária.
avenida aberta —
secura, paúra, sol duro
sombra, cadê você?
§ Caminho pela cidade universitária, sem resistência, sem empapar a camiseta: a temperatura, enfim, caiu. El niño, aquecimento global, região tropical: como é possível gostar de um calor acentuado que se estende por sete, oito meses? Agora, primeira vez no ano, caminho sob o ar resfriado, ponta dos dedos gelada. Um estudante cruza meu caminho. Minha cabeça é um só grande e assombro tema. Por isso, em vez de ler, na estampa do seu casaco, “engenharia elétrica”, leio “emergência climática”.
é o fim do mundo —
mas no canteiro da rua
a orquídea viceja
§ Cidades devastadas pela ira de deus, nosso único deus, deus-dinheiro, deus-mercado, deus-consumo, em nome da exploração de tudo, do lucro e da brutal concentração de renda, amém.
neoliberalismo —
onde antes havia um terreiro
agora, um pet shop
§ O verão, neste clima de extremos, é uma agressão. O inverno, se rigoroso, nos acimenta. A primavera é um outro desbunde. Só o outono é terno. O outono acalma a natureza, arrefece a força do sol e do céu, adormece as plantas. O outono me acalma e, calmo, tenho mais energia, alegria.
dezesseis graus —
de repente, embriagado
de damas-da-noite
§ Caminhar sob o frio, próximo à vegetação densa, gélida e silenciosa, logo pela manhã — mãos nos bolsos, ponta do nariz gelada, fumaça pela boca —, é a imediata e perfeita fusão entre conforto e desconforto, satisfação e incomodo, esforço e prazer. Atento-me a cada ar frio que entra pelo nariz, percorre os pulmões e, morno, é exalado. Caminhar sob o frio, logo pela manhã, propicia uma outra forma de atenção — mais dura, aguda. Paro no ponto de ônibus. Exalo, relaxo, reparo. Sinto frio, mas ele é bom.
manhã gelada —
velhos bêbados nos bancos
burgueses correm
§ A caixa e a empacotadora do hortifruti, ambas venezuelanas, riem, tentam esconder, mas não conseguem, de algo que acabou de acontecer. A caixa me garante que não é comigo, que o motivo da graça foi outra coisa, já passou — mas não conseguem parar de rir. Tentam me explicar o que houve, porém as palavras são atropeladas pela gargalhada e a mão na boca. Uma registra o valor das bananas, a outra as recolhe — e as duas, em portunhol, se esforçam para me explicar o motivo, enfim me incluir na suspensão do sério, na fresta da graça, na mais iridescente comunhão que é rirmos uns aos outros, sobretudo do banal. Existe essa realidade no dito primeiro mundo? Minha gente simples, latina; minha gente ingênua, risonha. Agradeço e sigo meu dia, o coração quente.
as moças gargalham —
a dureza do trabalho
se esvai pelas bocas
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #76,
Felipe Moreno
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