Haibuns de fim de inverno

§ A solidão é uma miragem; tudo que existe convive.
casinhas coladas —
a vizinha me oferece
bolo de cenoura
§ Engata a marcha, acelera; o vento sibila, rasga. Breu e domingo: os patrões gozam e mentem, fingem que trabalham; os homens ralam, abastecem a cidade. Troca a marcha, afunda, o motor berra, o aplicativo exibe: a dois minutos do destino de mais uma entrega. A pista e o corpo iluminados pelo astro noturno e pelo farol fosco.
lua alta, seis graus —
as mãos congeladas
do motoboy
§ Saio de uma sala de aula verborrágica de filosofia, me deparo com o fim da tarde, subo na bicicleta, começo a pedalar e, de repente, consigo me abandonar no ninho do haicai.
vento contra
bicicletinha a mil
rosto gelado
§ Rua principal: distraído com haicais, esqueci de entrar no mercadinho. Vou passar as próximas vinte quatro horas sem açúcar e detergente. Importa é que não deixei escaparem a cena e o verso.
telhado terracota
vira-lata caramelo —
tom sobre tom
§ Ando só, penso só — sem pai, padrasto, padrinho, irmão mais velho. Onde estão os homens maiores da minha vida? (Sei das mulheres — maiores ainda.) Já não vou ao templo zen: evito ser discípulo, embora gostaria. Meu governo, masculino, é quase sem mestres — senão alguns poetas, tão passados. Praça XV de Novembro: me enfio debaixo desta árvore de trezentos anos.
solidão
a figueira me diz não —
solidez
§ Abandonado no presente instante: evento desgarrado que não se acessa antes de dez mil tentativas. Derramado, num lapso, sobre a vida circundante, qualquer que seja: o eu transborda, se liquefaz sobre as coisas. Tudo, em dois ou três segundos, tão entrelaçado, que quase nada se distingue: tudo banal, relevante; tudo sacro, profano; tudo é sério e nada é sério.
cheiro de esgoto —
o pitbull, ofegante
rente aos girassóis
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #106,
Felipe Moreno
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