Frango de padaria, pastor apocalíptico e outros haibuns

§ Velho edifício, construção do início dos anos 70. Há quem resida aqui desde a sua inauguração. Nunca foi reformado, apenas recauchutado. Todos os dias as pastilhinhas quadradas, coloridas, despencam, aos montes, das paredes. Acabado, tem seu charme: consegue ser mais bonito que o edifício do outro lado da rua, novíssimo, moderno, exótico.
edifício Presidente —
a senhora espia e fuma
pendurada no batente
§ Sábado, onze da manhã. Dezesseis frangos no grande forno, com espetos giratórios, expostos na calçada da padaria. Como gêmeos que a mãe veste idênticos, dois senhores (vizinhos e colegas, não parentes), as mesmas barrigas avantajadas, regatas e sandálias de couro, aguardam a douração ideal do bicho. Os espetos devem girar mais quantas vezes? Os senhores já têm fome, mas não têm pressa. Três vira-latas, dois caramelos e um preto, farejam, olham e babam: têm fome, esperança, paciência e humildade. Qualquer resto vale. Agora ou depois.
osso de frango
rola na vala e na boca
dos vira-latas
§ Domingo, sete e meia da manhã. A noite de sábado, fria, lua crescente, foi perdição para muitas pessoas, rotina para tantas outras. A manhã de domingo escracha, no coração da cidade, quem é quem.
homem derrubado
mulher séria e sóbria
a sós, no ponto de ônibus
§ Ainda domingo, horário da melancolia: programa de auditório na TV, repetições de séries nos streamings, ponto de inflexão do final de semana: a segunda, de labuta, começa a eclipsar o dia de descanso. Para a pequena-burguesia, as tarefas do cotidiano: tomar banho, criar conteúdo para as redes, abrir o boleto que o zelador despachou debaixo da porta, abrir a porta e lembrar de passear com o cachorro. Descer na calçada do condomínio levando apenas coleira, sacolinha de mercado, o animal e a muleta digital.
dono no celular
enquanto seu shih-tzu
caga no canteiro
§ A noite cai e vou até a padaria. Que não é exatamente padaria: antiga vendinha de bairro, hoje conveniência, miscelânea de mercadinho, tabacaria e, agora sim, padaria; vende desde pão a cigarro eletrônico, óleo de cozinha a desodorante. Sem clientes lá dentro. O único funcionário, do lado de fora, recostado na mureta, acaba de acender um cigarro. Digo para não ter pressa: pode fumar e depois me atender. Mas ele tem seu macete: prende o cigarro nos buraquinhos do muro, entra e diz que o pão saiu há pouco. Faz tudo com educação e um tanto de pressa: cumpre com o dever sem tirar os olhos da fumaça que vence lá fora.
no muro, o cigarro
é tragado pela boca
do tijolo
§ Apocalipse no miolo do calçadão. A paisagem é pacífica, os acontecimentos, corriqueiros. Mas o homem solitário, pobre, porém com traje formal, calhamaço sagrado na mão, prenuncia o fim. O juízo final está por vir há mais de dois mil anos. Não veio ontem, deve vir amanhã. Se não amanhã, depois, em breve.
na praça, o pastor
vocifera: espuma branca
no canto do lábio
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #80,
Felipe Moreno
>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<