Fragmentos cariocas

1. O Rio ferve, mas amansa. O Rio agride, mas é doce. O Rio é a maior cidade provinciana do mundo (não confundir com cidade mais provinciana do mundo) e o carioca, mais que bairrista, é um publicitário de si mesmo, da sua praia, do seu modo de vida, do seu sotaque. 95% dos que torcem o nariz para o Rio e para o carioca fazem pela mais pura inveja: só um ressentido, um amargurado ou um extraviado do divino não é tomado de encanto ao contemplar a Baía de Guanabara e a extroversão dessa gente.
2. O carioca fuma em ambientes quase fechados: se tem teto, mas as laterais são abertas (uma marquise, por exemplo), a permissão está dada. O carioca é um praguejador nato e, ao menor sinal de irritação, os palavrões saltam da sua boca, amplos, rasgados. O carioca da zona sul é um empreendedor do lazer, um profissional da descontração. O carioca é, além do mais, refém da alegria de viver.
3. Apreciador do sotaque carioca — canto à capela, chiado e enérgico —, me pego de butuca, no ponto de ônibus, apenas ouvidos na prosa alheia; me pego pedindo informação sem necessitar — só para ouvir o carioca cantar seu cotidiano.
4. Sonoridade aberta, sincronizada com as batidas do coração, o sotaque do carioca é um canto com gosto de sol, com som de mar — canto quente, caiçara e cordial. 40º C separam a projeção fonética de um berlinense da de um carioca.
5. O bairro do Flamengo e seus barões e baronesas, registrados nos nomes dos velhos condomínios de luxo, construções dos anos 50, 60. Amplos jardins, sacadas imperiais. No entanto onde estão, às 10h45 de uma segunda-feira, os barões e baronesas detentores dessas terras? Só há a procissão de branco: mulheres pardas e pretas, em marcha solene, carregando tesouro. Dentro de cada carrinho que custou quatro vezes seus salários, a miniatura burguesa e branca, futuro barão ou baronesa. Essas vidas claras e rosadas que valem mais que as escuras, sob uniformes brancos, que as carregam por essas calçadas largas e ruas arborizadas. Recorte de um Rio de ranço escravocrata inquebrantável.
6. A mulher no vagão do metrô: pilha de nervos. Trabalha na praia, espetinho de queijo, mas hoje chove no Rio. Mora no morro, já desceu, mas preferiria voltar, desabar no colchão e poder não pensar, desatar a mente do tempo, aconchegar a vida dura até que a dureza amoleça e caia no sono. A pele torrada pelo sol, envelhecida; os joelhos ralados e o negro debaixo das unhas roídas. O homem gentil com o saco de bombons dentro da mochila, e a mochila no peito: circula no vagão e oferece, muita educação, dois por cinco, ajudar a criar a filha. Povo esgotado, estamina extraída do estoque da sobrevivência. Carcomido pela circunstância. Lá fora, lá em cima, a rua e o sem número de sem-tetos que vive nela. Capital-pecado: “calçada suja e nossa raça dorme em cima”.
7. “Vago na lua deserta das pedras do Arpoador/ Digo alô ao inimigo, encontro um abrigo/ No peito do meu traidor”. As pedras do Arpoador; a praia do Arpoador. Aqui Cazuza pediu para fazer seu último passeio. Daí logo partiu, aos 32, em julho de 90. Aqui também há uma bonita homenagem ao nosso ferino e refinado, saudoso Millôr Fernandes, praiano e erudito, único sujeito do mundo versado em Shakespeare e frescobol.
8. Barra da Tijuca, 12h14. Nos bancos da frente do Corsa cinza, portas escancaradas na rua vazia e larga, dois trabalhadores abrem, em espontânea sincronia, suas marmitas em embalagens redondas de isopor. “Pediu qual, mané?”. Dois copos de Guaravita sobre o porta-luvas. À frente, três mulheres, vindas da praia, limpam a areia dos pés na água da chuva que o buraco do asfalto captou. Ensopam as solas na água morna e riem. Um pouco adiante, a praia da Barra. Por essas bandas Tim Maia, em 1987, profetizou: ainda é bonita, essa natureza toda, mas já vai ser dominada. Céu cinza, mar ressacado, ondas arrebentam e se pulverizam no ar abafado: show de água e sal.
solidão e mormaço
um passo adiante e o mar
dentro dos olhos
9. As sacadas do edifício Itapoãs (que, de longe, não está entre os de mais alto padrão da Barra da Tijuca) são do tamanho de uma kitnet ideal onde eu poderia, com conforto, alocar todas as minhas coisas e viver bem durante toda a vida.
10. Legião de moradores de rua, Praça Tiradentes, domingo, nove da manhã, vinte e oito graus. Correria, gritaria, insultos. Um homem magro, sem camisa, berra e bate no peito; outros dois tentam acalmá-lo. No centro da praça, a estátua monumental. Nas curvas da estátua, seis pivetes metem os pés, escalam, pisam nos cavalos e nos homens de bronze: imperam os pivetes pardos e pretos sobre a história dos homens brancos. A senhora, pernas cruzadas nos bancos do ponto do trem, vê tudo de olhos cerrados: o sol, a paúra dessas praças. Sentado ao lado da senhora, também de pernas cruzadas e olhos baixos, aponto meu lápis e falho na função: a ponta se quebra quatro vezes, o lápis diminuindo. Vou conseguir decorar esse mosaico de glórias e agruras urbanas até ter a oportunidade de colocá-lo no papel?
11. A cena do futevôlei nos postos 9, 10, 11. E o futevôlei, no Leblon, é coisa seríssima. A cada cem metros, uma rede montada e um jogo acontecendo. Marmanjos marinados, às 15h de uma sexta-feira, disputam bola por bola com se fosse a última. E se divertem muitíssimo. A competição saudável; a saúde da competição. A batalha na dimensão do lúdico. Guerra de suor e sunga à beira do mar; confronto sensual.
12. Para cada jogo de futevôlei, um público com os pés na areia ou no calçadão: rapaziada fazendo a vez de treinador, dando pitaco, tirando sarro, azucrinando. Pesco alguns nomes. Claudião, cerca de cinquenta anos bem definidos num corpo esguio e bronzeado, pedala no calçadão, lento, e pousa para assistir a cada confronto. Voyer de futevôlei, conhece todo mundo. No posto 9, vê um moleque estourar com o colega de dupla, que está jogando mal etc. O moleque esbraveja e Claudião zoa: “Dá uma Maracugina pra ele. Tá muito nervoso. Tá com leite acumulado. Precisa jogar o leite fora” [sic]. E explode de rir.
13. Ipanema, fundos de um restaurante delivery. No meio-fio, a matilha de motoboys, olhos de fogo, atravessa a visão nas pernas nuas da garota de 22 anos: olho agressivo, animal, que viola a carne macia. O trago forte no cigarro barato e a expressão de insatisfação de quem só pôde comer com os olhos.
14. São Paulo nos habitua à impressão de que qualquer outra capital brasileira preserva, mesmo nas regiões de ápice da urbanidade, a característica de província, de cidade pequena. Quem já frequentou os horários de pico do metrô paulistano, em todo o seu aglomero, correria e espremeção, encara o metrô carioca com ares de bondinho.
15. Eu para o segurança do MAM, fim do dia: “Agora só os banheiros químicos aqui fora?”. Ele: “Agora só os químicos, lá dentro já fechou”. A espera na fila serpenteante das três escassas cabines unissex já não é compatível com a minha capacidade de retenção fisiológica, a bexiga estourando. Leitura de linguagem corporal, comunicação sem palavras entre machos, o segurança capta minha aflição e encaminha a solução: “É para você mesmo? Pô, pelo amor de Deus, amigo”. Olha de soslaio para os lados, desliza para o canto e faz com que eu o siga. Não sou capaz, ninguém seria (nem João do Rio nem Rubem Braga, nem João Antônio nem um Shakespeare carioca) de pôr em palavras a entonação e a energia do segurança, que me apresenta um novo banheiro, vazio, livre, ancestral: “Aquela árvore ali, ó, coisa linda”, a mão trêmula e clandestina indicando o caminho.
16. O crepúsculo carioca, nesta quase primavera, é o desabar de uma beleza laranja sobre uma cidade desenhada por morros. Queda, cor e curvas: às 17h30, o Rio é a sensualidade da sua própria paisagem.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #62
Felipe Moreno
Don't miss what's next. Subscribe to Farfalhada niusleter: