Florianópolis hostil (ou a geração desabitada)
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1. Não estamos saindo de Florianópolis, estamos sendo expulsos. Arrastados para fora, cuspidos. Na casebre úmido de uma amiga, as paredes da sala, de alvenaria, estão mofadas, e as ventanias que vêm do sul, gélidas, cortantes, nos meses de inverno, invadem as frestas de madeira, enormes e espalhadas pelo cubículo (vendem como chalé), com cerca de 25 metros quadrados. O custo do aluguel é de mil e oitocentos reais Por quê? Porque é Florianópolis, a Ilha da Magia — que significa ser uma cidade assentada na venda da própria imagem para quem, de fora, pode pagar por uma experiência turística, e a supressão da realidade para a classe média baixa e aos ainda mais abaixo que aqui vivem.
2. Florianópolis: nossa ilusão de Califórnia, nossa San Diego sem grife — e conservadora.
3. Bairros como Rio Tavares e Campeche, ao sul da ilha, foram dominados por uma classe específica, nova: desenvolvedores, programadores e afins, num life style surfista. É a galera da tecnologia que, hoje, goza da possibilidade de pagar quatro mil num aluguel, nesses bairros que, da noite para o dia, tornaram-se nobres. São, enfim, os operários da distopia que, sem deter a maior das responsabilidades (mas alguma responsabilidade), têm que jogar o jogo sórdido da especulação imobiliária, cão que come cão.
4. Aqui, em algumas regiões, num apelo visual aberrante, o tecnoneoliberalismo agressivo convive com o provincianismo bucólico, o high tech se funde com a precariedade. Daí a vertigem, fruto da discrepância, deste pedaço de terra encantado: a coexistência de fragmentos da estética californiana com a sobrevivência do ar colonial, pescador, humilde, local. Patinetes de aplicativo circulam sobre as típicas calçadas despedaçadas do sul do mundo; uma startup a 100 metros de um rancho de madeira; um empório gourmet ao lado do armazém do seu Zé e um mini mall do outro lado da rua de um boteco com mesa de sinuca.
5. Adentramos a realidade estudantil dos bairros próximos à universidade federal e recebemos o selo manezinho da ilha de psicodelia e precariedade arquitetônica: casas com inúmeras goteiras, banheiros colados à cozinha, salas azulejadas, fachadas azulejadas, tudo azulejado com as cerâmicas mais horrendas. Anúncio na OLX: kitnet (melhor, studio), 15 m², mobiliada, dez minutos a pé da UFSC, R$ 1.500,00, contas inclusas. Os móveis são novos, de MDF. E quem achou caro deve se contentar com as que custam R$ 1.100,00: kitnets dostoievskianas, também conhecidas como cativeiros, frigobar enferrujado, cama de solteiro mofada, paredes descascadas etc. , localizadas no alto de algum morro.
6. Em Florianópolis, somos um personagem dostoievskiano tropical, precário e perturbado, residente de um cubículo cujo proprietário, constantemente no nosso cangote, nos monitora e restringe (sem pets, sem crianças, sem visitas). Jovens trabalhadores e/ou estudantes, enfiados em kitnets e acumulando nossas próprias memórias de subsolo.
7. Somos a geração do aluguel sem perder de vista, do casamento estável com a vida de inquilino de propriedades alheias. Afinal, qual jovem adulto de classe média, do sul global, não herdeiro, tem condições de comprar, mesmo financiar em trinta anos, um mero apartamento de quarenta metros quadrados, no valor de 180 a 320 mil reais?
8. Uma geração incapaz de comprar um imóvel, com as tantas tentações que, lá fora, crepitam, assediam, hipnotizam, é aquela que recebeu e só pôde aceitar, de bico calado, a condição de geração que não pertence a lugar nenhum, que foi obrigada a vagar, divagar, transitar, pular, rumar, não importa o quão exausta esteja. Uma geração que, de seis em seis meses, precisa recolher novas caixas de papelão para mais uma mudança.
9. Impossibilitado de adquirir um imóvel, a anos-luz de distância da viabilidade de financiar um simples apartamento, o jovem adulto atual, de classe média, desfila por brechós, transita em festivais de música, divaga, cidade aqui, outra ali, por Airbnbs. A incerteza de não saber quando, ou se será possível habitar, algum dia e de fato, uma moradia, já não o faz insistir naquilo que o ancora, mas descompensar no que, mercado à fora, apenas flutua. Privado, pelo tecnoneoliberalismo, de ter a vivência de um ambiente, de forma sólida, perene, construtiva, só lhe resta a experiência de perambulação e performance, degustação frenética e ligeira — que produz muita imagem, pouquíssimo sentido — de mundos e culturas consumíveis e customizados pelas mãos do mercado.
10. A vivência ancorada foi sabotada pela experiência dispersante. E nos tornamos, jovens adultos de classe média, do sul global, turistas de sensações fugazes. Não temos uma residência a construir e passar a vida, deixar de herança aos nossos filhos (até porque paramos de ter filhos), e o que nos resta, além do mais, é construir nossa imagem virtual. Nosso bem maior não é uma casa, mas um perfil.
11. Minha revolta não consiste na impossibilidade de realizar, sequer planejar um modo de vida rico, abastado, cheio de garantias; mas na impossibilidade mesma de realizar, sequer planejar um modo de vida simples, simplíssimo, com garantias básicas: apenas uma moradia, de um cômodo, talvez uma moto qualquer, ou um Fusca.
12. A mim bastaria, para toda a vida, o que o Velho da Havan ganha em 24 horas, o Neymar, em 1 hora, Jeff Bezos, em 1 segundo. Meus oponentes sociais, meus anti-modelos de qualquer coisa são, justamente, os que podem me esmagar — ou me salvar — com suas riquezas. Deliro: se o Velho da Havan, o Neymar ou o Jeff Bezos me fizessem um PIX de um milhão de reais, do absoluto nada, eu, obviamente, os seria eternamente grato. Procurar um mecenas onde só há ganância e indiferença: delírio, delírio.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #78,
Felipe Moreno
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