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September 1, 2025

Filosofia: do sedentarismo ao exercício


No limite, seria importante eu abdicar da filosofia — que se tornou, no grosso, sinônimo de teoria. Recolher meus exercícios apenas à poesia, às acrobacias e à disposição de ir às ruas, lutar, perseverar. Quem, há muito tempo, forja o mundo, os seres, as relações, os desejos é a sociedade de mercado, encarniçada no delírio de uma progressão material sem fim — até que haja uma casta de semi-deuses ciborgues, que controlarão mentes e corpos, a galáxia. A sociedade de mercado e seus inúmeros nichos de práticas cooptadas: mitologia do trabalho (da exploração) como atividade redentora, estilo de vida fitness, proselitismo de coaches, igrejas evangélicas agressivas, encorporadas à dinâmica e à estética do capitalismo.


Num outro canto da realidade, um livro de filosofia é lançado; encontra um grupo seleto de leitores que o entende, se anima — no entanto, mesmo que as ideias sejam insurgentes, suas análises e proposições caducam no dia seguinte. Pois até o núcleo duro, filiado às teorias, já pouco consegue absorver o que as filosofias atuais propõem. Sofremos do excesso de teorização e do excesso da leitura teórica sem desembocamento, ao passo que o horizonte real, palpável, é o da brutal escassez de proposições práticas. Do pouco que absorvemos em maior escala (quando a filosofia, em raras ocasiões, se torna mais ou menos mainstream e assimilamos, por exemplo, que vivemos numa sociedade do cansaço), seus diagnósticos e prognósticos se estagnam nas consciências: entendemos, verificamos, concordamos; mas o que fazer? A filosofia emperra quando atinge a necessidade da ação, definha quando o corpo pede instrução. Não à toa, é um meio deprimido.


Tudo é mapeado, sondado, especulado; e, quando há apontamento de direção, é demasiadamente abstrato, vago, vertiginoso. O que vigora, por muitas décadas, é um pânico da instrução, um grave preconceito contra a doutrinação — mas doutrinar, em regência múltipla, é transmitir e ensinar. A abrangência do seu sentido, porém, foi reduzida a um só, pejorativo: doutrinação como sinônimo de sectarismo, como a via que descamba aos fascismos. De fato, os supremacistas sequestraram e mutilaram os significados de doutrina. Enquanto isso, o tecnocapital doutrina, os padrões de beleza doutrinam, as igrejas e os coaches doutrinam, tudo o que nos tornamos, os modos como atuamos na vida têm sido à base de uma doutrinação forçada — mas a filosofia, tão ponderada, não pode se rebaixar às práticas concretas e aos treinamentos.


Perdura, ao mesmo tempo, um nível monstruoso de sectarismo na filosofia atual. São muitas camadas sobrepostas que a transformaram numa ala comprimida e exclusivista. É consenso de que filosofia é o ramo do saber inaugurado pela (e restrito à) civilização ocidental: nasce na Grécia, toma rumo na Idade Média, revoluciona-se na modernidade, se prolifera e dispersa na modernidade tardia. Mas os chineses não são filósofos por conta própria — e, inclusive, antes do Ocidente o ser? Os indianos? Os incontáveis povos originários? Como quase tudo que existe de valioso no planeta, a Europa roubou a filosofia para si. O paradigma se mantém: na graduação, ninguém chega perto das filosofias guarani, mas todos são inundados de Kant e Hegel. Com exceção de meia dúzia de corajosos — por isso invalidados —, o sul do mundo mantém a subserviência do pagamento de tributo à filosofia do norte; seguimos, numa casta obediência, como papagaios de europeus e estadunidenses. Significa, claro, que a colonização incide igualmente, de forma implacável, nos saberes da vida.


Restou a sobrevivência às mínguas, num castelo de marfim: espremida em departamentos mofados, em encontros e conferências quando muito medianos, a filosofia se tornou parafernália conceitual, indústria de diagnósticos tristes, bitola da verborragia. O sucesso das religiões (teístas e seculares) esclarece as causas do raquitismo da filosofia. Não deveríamos, ainda, ser tão resignados ao fato de um culto evangélico ou a palestra de um charlatão ter um público tão farto e comunicar mensagens tão arrebatadoras enquanto uma sala de aula, a discutir filosofia, reúne meia dúzia de gente angustiada. O questionamento óbvio deve ressurgir com força e urgência: a filosofia deve ou não servir para mudar o mundo? Se sim, porque já não é capaz de mudá-lo?


Uma hipótese: a filosofia só se libertará do seu confinamento retórico e maçante, abstrativo e paralisante, quando voltar a funcionar como escolas de treinamento. Foi assim com os gregos — era nada mais que isso, aliás. De Sócrates e Platão aos estoicos e epicuristas: diferentes escolas, com abordagens, metodologias e práticas enveredadas por caminhos distintos, nas quais se treinavam corpo e espírito em direção à sabedoria. Não apenas um caleidoscópio de diagnósticos neuropsicossociais, mas, além, programas de exercícios, oficinas de inúmeros receituários. Devemos descer do salto dos nossos elitismos catedráticos e acolher, com muita atenção, as idênticas indagações das pessoas leigas: “Mas a filosofia, afinal, vai servir para quê na minha vida?”. A filosofia precisa deixar o calabouço do inutensílio, que deve ser reservado apenas à poesia e a outras atividades brincantes. Não porque é superior à poesia — na verdade, é inferior. Por isso mesmo é obrigada a se comprometer com um trabalho pragmático e programático.


Aceitem os não marxistas (eu mesmo, em último caso, não sou um), a despeito de todos os problemas identificados, contestações e superações que o marxismo, até agora, já sofreu: a última grande escola de treinamento filosófico veio de Marx, Engels e alguns de seus sucessores. Ali havia uma teoria social complexa e extremamente bem elucidada; havia uma desembocadura, mesmo que incipiente: um chamamento prático, com vias relativamente delineadas, à organização e à atividade do desmantelamento de um sistema desprezível na raiz e da construção de um mundo menos problemático. É sintomático, portanto, que a filosofia de Marx cristalizou-se — e assim ainda é — em sufixo designado a praticantes: leitores afeitos a Marx são marxistas. Do contrário, o legado filial deixado pela maioria dos filósofos do século 20 variou para o sufixo não mais de prática, mas de proveniência, pertencimento apenas: bergsoniano, heideggeriano, foucaultiano, deleuziano. Seria o resgate do sufixo ‘ismo’, às filosofias, não a ressurreição das ideologias totalizantes, mas o chamamento às filosofias exercitantes?


Penso que assim será. Ou então nos mantemos na defesa de dois modelos. Primeiro: o da tentativa de refutação de que a acusação da carência prática da filosofia é um truísmo, uma grosseria de não filósofos, uma análise superficial de quem não lê. Vale, ainda nesse caso, martelar com a indagação do povo: “O que a filosofia vai mudar na minha vida?”. Segundo, menos provável: o da excêntrica e desaforada admissão e proteção do status da filosofia como mero fetiche verbal e especulativo.


Filosofia social, filosofia da linguagem, filosofia da matemática, filosofias, filosofias… E, porque não, abrir mais um caminho: vicejar (e institucionalizar) o ramo das filosofias práticas? Vislumbrar uma filosofia articulada por exercícios — e que, comumente, esses exercícios sejam psicofísicos, que partam, finalizem ou se baseiem no corpo. Que assim seja: considerar a filosofia incompatível com o sedentarismo.


A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.


Abraços e até a farfalhada #105,
Felipe Moreno

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