Extrativismo mental e política da presença
A atual extrema-direita é a personificação máxima do niilismo: promete o resgate da ordem, da decência e da moral de um mundo que nunca existiu. Promete, portanto, a ilusão de um futuro baseado num passado igualmente ilusório. Ilusão duplicada.
A, digamos assim, esquerda progressista tradicional, adversária direta do projeto político de índole fascista, a despeito do seu senso de justiça e sensatez nos princípios, também parece não estar preparada para os grandes maus tempos que se aproximam — maus tempos de natureza não mais somente política, mas também geológica: se decepciona e se deprime com frequência quando o golpe é duro. Assim, também mostra sua feição conservadora ao se apegar a ideários e programas pertinentes e eficazes ao passado recente — porém não necessariamente ao presente e ao futuro. Esta esquerda progressista é, via de regra, lenta na disseminação do debate da catástrofe ecológica e das novas forças de dominação do capital, muito pouco criativa na formação de um novo programa, às vezes inoperante diante do inimigo maior: mantém-se aferrada à cartilha reformista-libertária, uma mistura de programas elaborados pelo socialismo com liberdades individuais reivindicadas e impingidas pelas insurgências cultuais da década de 60, como movimento hippie e maio de 68.
Assimilar a profusão do mundo atual e apontar diretrizes é missão dificílima. A exigência número um é possuir uma percepção íntegra e focada, uma mente calma e sensível. Quem mais treina para a formação de uma mente íntegra e focada, calma e sensível, são exatamente as pessoas que, através do desenvolvimento e popularização de novas tecnologias, propagam e incentivam seu uso desenfreado — consequentemente, seus males: desatenção, ansiedade, estresse, desequilíbrio dopaminérgico. São os profissionais do Vale do Silício que, em prol da maximização da qualidade de seus trabalhos e, muitas vezes, da agenda transhumanista, se ocupam em meditar, em manter uma dieta saudabilíssima, em não ter redes sociais (sic), e várias outras práticas relacionadas ao cultivo de um corpo e uma mente funcionando em capacidades invejáveis.
A atual condição mental da maior parte da população mundial é pouco saudável: os transtornos crescem avassaladoramente, e até quem se considera saudável tem apresentado dificuldade em cumprir funções básicas relacionadas à atenção e à paciência em determinados contextos e vicissitudes da vida cotidiana. No que diz respeito à saúde, as novas tecnologias têm desajustado, cada dia mais, a estabilidade mental que nos resta. O extrativismo praticado pelo capital, agora, é menos material, mais mental: solos e montanhas, embora ainda muito perfurados, são alvos menos promissores que a exploração da mente das pessoas. A insurreição contra o novo dogma, portanto, não poderia partir de outra instância que não a própria mente.
Trabalhar, a princípio, pela saúde do próprio corpo-mente, com o intuito de desviar-se, cada vez mais, das armadilhas do mercado — estas que, por meio de um roteiro de fácil acesso, podem patrocinar um projeto de corpo-mente saudáveis, a fim de que se esteja ainda mais inserido no jogo, se produza mais, crie soluções contra as agruras do sistema sem a necessidade de superá-lo.
Dessaturar, despoluir, juntar os cacos da mente atomizada e dispersa que o universo digital produz: primeiro passo para qualquer compreensão séria deste mundo. Apaziguar os sentidos e enriquecê-los com o mundo material e, necessariamente, natural: segundo exercício para fazer valer uma consciência que interpreta o mundo não apenas através de dados e estatísticas, narrativas curtas fluindo, em frenesi, pelas telas; mas através do contato do corpo-mente com os fenômenos destituídos de código: solitude, silêncio, observação do próprio corpo, contemplação dos fenômenos da vida.
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Felipe Moreno
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