Exercícios de ternura (fim do inverno)
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§ Vento cortante: assobia. Céu de chumbo e mundo grave, pedregoso: quando natural, é leve. Rosto rijo, lábios queimados — a dor purifica. Minha alegre tristeza neste fim de inverno.
tropeço no canteiro —
camélias brancas, camélias…
minhas lágrimas
§ Calçadas minúsculas, meios-fios carcomidos. Estranho desconforto prazeroso: quando, justamente, o perambular sem fim, na noite fria, faz a dor ventilar; ventila e não me afoga, nem me rende. Caminhada sóbria, procissão de um homem só, ascese urbana, errância justa. Vem a manhã, irrompe o azul claro. Peço uma corrida de moto, para mais distante.
sobre uma moto —
o vento contra o rosto
aves contra o vento
§ Burburinho de boteco, já distante; postes acesos, luz baixa, embaçada; garoa, um pouco de frio, o som dos meus passos neste chão, misto de concreto e terra — e o cheiro de terra que, no contato com a garoa, agora exala. Cafungo e choro, sem querer chorar. Alguém corta meu caminho e deve me julgar bêbado ou abandonado. Quase madrugada, meio da semana: o que faço fora de casa? Meia-noite, quarta-feira: o que faço com meus passos? Refaço o pensamento, sem pensar. Não bebi, não bebo, tenho meus amigos e quero me abandonar. Nesta garoa, nesta luz pouca, neste cheiro de terra, no som da sola do meu tênis quando toca esta terra. Detido pelo mistério, fração de segundo, sou o abandono de mim mesmo, não importa o quanto a vida eu neurotize, não importa se a paisagem é triste.
a noite se cala —
neuroses, estrelas mortas
mistério me engole
§ Último suspiro do inverno, a primavera desponta. Coloco uma roupa e saio, vou me despedir. A esmo pelas ruas, meus olhos aos pés das cores do mundo. Paro e flagro a miudeza da vida.
frame, fragmento —
a flor do ipê-amarelo
tão frágil, treme
§ O passado se apagou, o futuro se esvaiu. Restaram eu e minha bicicleta vermelha, lajotas soltas, lajotas firmes, esforço moderado e vento brando — no peito, no rosto, nas pálpebras. Aqui-agora: fragmento absoluto sob o brilho ordinário do mundo. Quando o tempo já não corre — escorre, síncrono ao vento.
devagarinho
pedalo, ego fraco agora
primavera forte
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #85,
Felipe Moreno
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