Farfalhada niusleter logo

Farfalhada niusleter

Subscribe
Archives
September 23, 2024

Exercícios de ternura (fim do inverno)


§ Vento cortante: assobia. Céu de chumbo e mundo grave, pedregoso: quando natural, é leve. Rosto rijo, lábios queimados — a dor purifica. Minha alegre tristeza neste fim de inverno.

tropeço no canteiro —
camélias brancas, camélias…
minhas lágrimas

§ Calçadas minúsculas, meios-fios carcomidos. Estranho desconforto prazeroso: quando, justamente, o perambular sem fim, na noite fria, faz a dor ventilar; ventila e não me afoga, nem me rende. Caminhada sóbria, procissão de um homem só, ascese urbana, errância justa. Vem a manhã, irrompe o azul claro. Peço uma corrida de moto, para mais distante.

sobre uma moto —
o vento contra o rosto
aves contra o vento

§ Burburinho de boteco, já distante; postes acesos, luz baixa, embaçada; garoa, um pouco de frio, o som dos meus passos neste chão, misto de concreto e terra — e o cheiro de terra que, no contato com a garoa, agora exala. Cafungo e choro, sem querer chorar. Alguém corta meu caminho e deve me julgar bêbado ou abandonado. Quase madrugada, meio da semana: o que faço fora de casa? Meia-noite, quarta-feira: o que faço com meus passos? Refaço o pensamento, sem pensar. Não bebi, não bebo, tenho meus amigos e quero me abandonar. Nesta garoa, nesta luz pouca, neste cheiro de terra, no som da sola do meu tênis quando toca esta terra. Detido pelo mistério, fração de segundo, sou o abandono de mim mesmo, não importa o quanto a vida eu neurotize, não importa se a paisagem é triste.

a noite se cala —
neuroses, estrelas mortas
mistério me engole

§ Último suspiro do inverno, a primavera desponta. Coloco uma roupa e saio, vou me despedir. A esmo pelas ruas, meus olhos aos pés das cores do mundo. Paro e flagro a miudeza da vida.

frame, fragmento —
a flor do ipê-amarelo
tão frágil, treme

§ O passado se apagou, o futuro se esvaiu. Restaram eu e minha bicicleta vermelha, lajotas soltas, lajotas firmes, esforço moderado e vento brando — no peito, no rosto, nas pálpebras. Aqui-agora: fragmento absoluto sob o brilho ordinário do mundo. Quando o tempo já não corre — escorre, síncrono ao vento.

devagarinho
pedalo, ego fraco agora
primavera forte


A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.



Abraços e até a farfalhada #85,
Felipe Moreno

>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<

Don't miss what's next. Subscribe to Farfalhada niusleter:
Instagram
Powered by Buttondown, the easiest way to start and grow your newsletter.