Estoicismo de mercado e novas (des)vantagens
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1. Estamos na passagem do sujeito depressivo hedonista para o estoico neoliberal. Daqui a cinco anos, com nossos planos, metas, agendas, todos nós estaremos enfiados numa academia fitness, inclusive as esquerdas boêmias, tradicionalmente desregradas. O novo arranjo neoliberal, seu novo empreendimento, nova temporada, é a da higienização da má conduta, da esterilização das sensações de torpor: ele já nos quer alertas (cafeína, microdose de psicodélicos), disciplinados (musculação, ioga, pilates), autovigilantes (abstenção de conteúdos digitais agressivos, para controle dopaminérgico) e, portanto, hiperprodutivos (mais que nunca, responsáveis pelo nosso próprio destino).
2. Os depressivos hedonistas enriquecem a indústria dos lixos alimentícios e, sobretudo, o complexo médico-farmaceútico, mas seus torpores e paralisias limitam as possibilidades de exploração do trabalho, geram crises profundas nas gestões de recursos humanos das empresas etc. Até agora, para o tecnocapital, foi um bom negócio — porém, em movimento de feedback positivo, assim como funcionam os circuitos algorítmicos, é hora de se corrigir e “autoaperfeiçoar” (lê-se criar novos nichos de mercado e produzir mais lucros). Sua aposta está no lançamento do estoico neoliberal, este sujeito que abastecerá a indústria dos alimentos saudáveis e, ainda (muito mais), a do médico-farmaceútico, sim — menos com antidepressivos e ansiolíticos, mais com as novas substâncias e produtos de booster psicofísicos: dos smartwatches aos psicodélicos.
3. Se já perdemos a sólida referência de como organizar as massas contra as violências sistêmicas, não devemos retornas ao elemento basal e atomizado, que diz respeito não aos coletivos, mas antes, porém, aos indivíduos, e nos perguntar: como se prepara um corpo e uma consciência aptas a enfrentar, sem sucumbir no primeiro choque, uma revolução armada, a iminente hecatombe ecológica ou, em primeira ordem, o recrudescimento do tecnocapitalismo?
4. Não é, exatamente, o mote do amor e solidariedade (mera repetição discursiva, rebordose da viagem lisérgica dos anos 60) que justifica a frouxidão das esquerdas atuais, mas seu assentamento num modo de vida que se consome, sem reposição de forças, num hedonismo etílico, canábico e sexual. As esquerdas jovens, só agora, começam a aglutinar as práticas de atividades físicas, sobretudo treinos de musculação, hipertrofia. Espaços antes dominados pelo perfil heteronormativo, as academias passam a receber os “alternativos”. Assim, devem produzir algum vigor psicofísico às suas vidas — acoplados, porém, em mais uma nova camada da subjetividade neoliberal, de narcisismo, culto ao corpo e dataísmo da saúde. Dispostas a aumentar as próprias forças e estamina, mas ligeiras na antecipação do bote neoliberal dos seus desejos, as esquerdas fariam um importante movimento se adentrassem a disputa por exercícios marciais. Que seja uma luta ou uma dança, um jogo de xadrez ou um manejo agricultável, forjariam, assim, novas harmonias e alianças, como aptidões a enfrentamentos e combates.
5. Abocanhar as pautas do hábito, dos modos de vida, das rotinas, das práticas do corpo e atividades físicas, as quais foram monopolizadas pela autoajuda e pelo neoliberalismo fitness e que, desde então, por questões estéticas e políticas, as rejeitamos. A literatura e a filosofia deveriam murchar sua hipertrofia discursiva, arrefecer sua tara pela linguagem, desviar sua bitolação pela retórica e adentrar o campo de disputa por aquilo que, concretamente, nos compõe: o que comemos, como disciplinamos nossos corpos, como cuidamos das nossas casas. A filosofia prática vigorou por todo canto, ao longo dos milênios; no Ocidente, foi desacreditada, descartada — e assimilada por forças que arrancaram a prática da filosofia, fizeram da prática um treinamento que, no fim, serviu de combustível à economia de mercado. Por escolha, peneiragem, restou às filosofias libertárias da modernidade o amor à intelectualidade, ao signo, ao jogo discursivo. Gostaria de participar de um encontro literário em que a discussão, em algum momento, fosse sobre hábitos de vida, não, exclusivamente, sobre os artifícios da linguagem; ou, um dia, perguntar a um grande filósofo: é você quem recolhe o lixo da sua própria casa e limpa as prateleiras onde estão seus livros?
6. Se não tomarmos a ciência psicodélica para nós, reposicionando-a, recalibrando-a num presente sumariamente anticapitalista e a um futuro pós-capitalista; se não adentrarmos a batalha campal do reconhecimento, uso e proliferação dessa ciência, numa práxis cuja intenção é a de derrotar o tecnoneoliberalismo e o transumanismo a seguir, os bilionários tomarão (já estão tomando) essa ciência para si e, com base nela, construirão o amanhã da distopia inimaginável.
7. Se a sensação de derrota nos adoece, se escapar é impossível; se é de uma ingenuidade colossal achar viável algum tipo de conciliação maior, desfazer a dicotomia entre uns (minoria) que ganham e outros (maioria) que perdem; se o futuro é um deserto, só nos resta a decisão do enfrentamento, a decisão de consentir com a necessidade de todas as formas de disputa. A velha luta, sim — agora complexificada nos mais variados tipos de combate.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #75,
Felipe Moreno
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