Escrita e neurose
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§ O povo letrado, povo tarado pelo signo e que, munido da letra, tudo devasta e determina: fato que remonta até aonde e quando? Nossa berço cosmogônico, judaico-cristão? A bíblia, o livro do criador, a palavra de deus. Primeira frase do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo”. Um xamã recebe a mensagem do outro mundo, ou do divino, no transe ou no sonho, por meio da oralidade. Moisés recebe os mandamentos de deus por escrito, numa tábua. Civilização verbocentrada, tiranizada pela letra, tiranizadora da diferença através do verbo.
§ Àquele persegue a escrita (e passa a ser perseguido por ela), como num impulso essencial de quem busca ar para respirar, convém não ter filhos, quer dizer: declarar guerra e amor à solidão. Escavação ambígua, rachada entre a luta e a graça. Agudo tensionamento de onde germina o texto.
§ Num texto, excesso de vírgula é a marca do neurótico. Além disso, só os neuróticos colocam as vírgulas no lugar certo.
§ Só o pensamento crítico me salva das tantas armadilhas deste mundo de graves induções, tentações; mas só o abandono deste mesmo pensamento crítico é que, em último grau, me exime do peso de existir com tanto pensar. O pensamento crítico que não é, na última fronteira, descartado, torna-se uma forma de veneno.
§ Mas palavras não me salvam, nunca me salvam (salvar do quê? Do sofrimento? Existe salvação?). As palavras me desviam — do terror, da loucura, da mais abjeta ignorância, que não é a letrada, é a da inconsciência e a da subordinação a tudo aquilo que nos drena a energia vital, a vivência do espanto, o simples contentamento. Não quero salvação; quero recuos e desvios, outros acessos. E quero que as palavras me guardem os sentidos. Sim, as palavras também me guardam.
§ Todo humano tem sua teleologia, até o ateu. Ser sapiens é buscar a causa última, alguma causa última. Aquele que pretende buscá-la por meio da palavra funda sua própria religião — a religião da verborragia, libertadora apenas quando, no limite, abandonada, vitimada pela heresia do seu próprio criador.
§ Quando o excesso de lucidez não contido provoca perturbações tão gritantes que se confunde com a alucinação. O excesso de lucidez incontrolado como mais uma forma de alucinação.
§ Louvo e persigo a moderação, em tudo (inclusive na escrita, em que me tornei obcecado pela moderação de palavras, pelo texto sucinto), porque sei que, em mim, ainda lateja a veia do excesso e do extremismo.
§ Chego a um passo de romper com meus interditos, de moral religiosa, recuo e afirmo: não posso. Em vias de desejar um estado de renúncia ainda mais intransigente, hesito e digo: não devo. Me firmo na presunção do meio do caminho. Vejo o desregrado e concluo: ele não sabe. Vejo o abnegado e defino: ele não entende. Incapaz de raspar a cabeça e vestir um hábito; incapaz de me lançar à boemia intoxicante. Minha ética, errática, é a da ponderação. Talvez eu seja, até o fim, isto que sobra após todas as ruminações: serei sempre o errante para o santo que persigo e nunca serei, e o moralista para o mundano que insisto em não querer me identificar; errático para um, moralista para outro, neurótico para ambos.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #82,
Felipe Moreno
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