Escrever não é lazer; mas escrever é caminhar
§ Sinto prazer quando é chegada a hora de comprar um novo lápis. Como se o novo lápis renovasse o voto da escrita, depositasse frescor e ânimo à prática. Um prazer baseado em dois sentidos: primeiro o visual, que admira a forma e a cor do lápis; depois, fundamentalmente, o tátil, que experimenta a sensação do grafite no papel, a relação da caligrafia com o novo material. Prefiro os lápis tipo 2B, 3B ou 4B. Experimento diferentes marcas. Sommelier de lápis: o lápis é meu consumo fútil.
É chegada a hora de comprar lápis. Atravesso três esquinas para chegar à papelaria da qual sou freguês, que oferece variedade e bons preços. Saio da loja com a embalagem de papel pardo nas mãos, que guarda dois lápis azuis, 4B, de fabricação alemã, e uma novidade: um pequeno apontador de ferro, fabricação brasileira. Total: 7,00 reais. Dois reais cada lápis, três reais o apontador.
Um lápis e um apontador novos incentivam minha escrita tanto quanto um bom retorno de alguém que me lê. A matéria-prima para o meu ofício são três objetos: caderno (que eu mesmo confecciono), lápis e apontador. Não uso borracha. Se erro, rasuro, deixo a marca no papel. Não sumo com a escrita que fere o tom: legitimo-a e a reescrevo. Assim, parte da minha escrita é uma reescrita. No papel, erro e melhoro; do papel, transfiro para o computador.
É curioso saber que prefiro dizer escrita do que literatura. Escrita sempre me soou mais palpável, concreto, preciso; e literatura, mais vago, volátil, inconclusivo. Minha escrita, que visa o palpável, não pode girar apenas em torno de ideias e palavras, mas da existência de um caderno, de um lápis e um apontador. Meu protesto contra uma escrita que se digitaliza. Assimilei o valor de caminhar, com os dedos, pelos espaços de um papel texturizado. Junto com o valor de percorrer, com os pés, as ruas tortuosas da minha cidade enquanto sou assaltados por clarões. Meu protesto contra a palavra pura.
Pois há momentos em que sou tomado por uma constatação funesta sobre a tal literatura. Digo a mim mesmo: escrever é um ato insólito. Diferente das minhas amizades que também escrevem, há estranhos momentos em que não posso escapar da constatação de que escrever é um gesto anormal. A fala seria suficiente para tudo, inclusive literatura. No entanto, em relação ao falar, escrever é outra coisa. Nem mais, nem menos, nem melhor, nem pior. É uma outra coisa que me escapa ao sentido. Por isso, às vezes, a julgo, contesto seu valor, e digo a mim mesmo: escrever é insólito, anormal. Em contrapartida, nunca penso isso a respeito das caminhadas pelo centro da cidade, ou em qualquer outro bairro, sem destino ou compromisso. O flanar, na verdade, é o ato que produz um mínimo de sentido ao escrever. Por isso o caderno, o lápis e o apontador.
§ Embora possa haver prazer, escrever não é lazer nem entretenimento. Escrever é prática, rigor, ofício, dever. Cumpro com meu dever: agacho no meio-fio, suor escorrendo pelas costas, empapando a camiseta; puxo o caderninho de mão, do tamanho de uma caixa de fósforo, e o lápis, em idade avançada, do tamanho do meu dedo mindinho. A ponta do lápis, mole, está prestes a quebrar, ameaça a se soltar a cada contato mais firme com o papel. Não tenho o que reclamar, cumpro com meu dever, agradeço: pior seria sem lápis e papel. Força nas panturrilhas, pele encharcada, caderno minúsculo, lápis capenga: apesar de tudo, agradeço. Bicho humano desta era esfacelada, não fui forjado nos mitos de criação animistas, não conheço as grandes lendas ancestrais, não sei praticar a literatura oral dos originários; vim ao mundo sobre um mundo mudo de místicas, pasteurizado pela secularização, iludido da própria ciência; só sei andar de tênis, reconheço os asfaltos e necessito da matéria básica que registra visões e memórias: minha constelação de fragmentos à luz do meio-fio.
agacho e grafo
assim, tão vazio de mim
cheio de cidade
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #46
Felipe Moreno