Escombros e encantos: haibuns na ilha

§ Florianópolis, habitat da invasão predatória das big techs — mas capital provinciana, onde ainda, numa quinta-feira chuvosa de janeiro, a zeladora do condomínio de três andares, escorada sob a velha marquise, ociosa, escalda os pés na bacia e toma chá de mirtilo, a toalha branca sobre o colo.
pesca as gotas de chuva
esquenta os pés na bacia
a zeladora ociosa
§ Na Vale do Silício brasileira (sic), na avenida mais movimentada deste bairro de classe média, o bueiro vaza, ininterrupto, durante três dias, e alaga toda a via. A companhia de água e saneamento do estado não atende aos vários e duros chamados. A deus-dará, a população brinca de pular poças e, já tão acostumada, aplica o salto sem tirar os olhos da tela do celular.
no chão, litros de nojo
mas a sola do meu All Star
sai intacta
§ Na Ilha da Magia, o senhor, nativo até a sujeira sob as unhas, Havaianas carcomidas, bermudão de sarja, sem camisa, barriga gigante e dura, aguarda para fazer mais um jogo da Mega-Sena, o enésimo, em quarenta anos de hábito. Rito mundano, nunca acertado em cheio, ele anota e sibila os números da vez, trinando, nos lábios ressequidos, o ‘t’ dos três, dos trintas etc.
o perdigoto
voa do beiço do velho
na fila da lotérica
§ Órfãos e desirmanados: o mistério inanimado dos pés de calçado absolutamente sós, a céu aberto. Às vezes a estranha exceção: para o único pé, a única meia, dentro, ambos no seu abandono urbano.
tênis desbotado
descalço, no sol da calçada
sem par e sem dono
§ Esquina qualquer, nove da noite: o cocô de cachorro, dentro da sacola plástica transparente, com dois nós, emplastrada no cimento, molhada pela chuva, contrasta com os dois garotos que se beijam com uma paixão de fogo, bocas de um lado a outro, corpos colados. Mas por que o cocô, que já havia sido coletado, devidamente isolado na sacola, não foi parar no lixo? E por qual motivo o menino e a menina se beijam nesta esquina, não qualquer beijo, mas essa demorada fusão de línguas, vestes que se roçam, faíscam, como se a paixão fosse a única guerra que exigisse o pleno contato das peles, e cuja morte, depois, no mais íntimo, fosse mutuamente desejada?
esquina, mistério —
as fezes de um cão anônimo
o beijo dos meninos
§ Quebro a outra esquina e a fragrância me assalta: a dama-da-noite me dá boas-vindas. Vou até ela, vidrado, feito morcego na busca da polinização. Enfio meu rosto magro nas suas folhas e flores carregadas: agora, feito vira-lata, cafungo, profundo, sem ter noção da hora.
dama-da-noite
que impregna a calçada
me faz vira-lata
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #69,
Felipe Moreno
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