Elogio aos pequenos exercícios de dureza
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§ Já não escapo da noção de que todo modo de vida deve ter sua base na função do corpo, das atividades físicas. Qualquer prática terapêutica (ou qualquer prática que vise melhorar nossos estados de consciência) que não tenha o movimento do corpo como ação indispensável, quiçá crucial, mas que se emaranha apenas em signos e códigos, no mundo da linguagem como produto total, e, através do sedentarismo, faz do intangível seu refúgio ideal, é uma prática capenga. Considere o que um antigo mestre de ioga indiano pensaria da psicanálise.
§ Uma mente concentrada; e isto é tudo. Quando forte, cristalina e concentrada o bastante, pode até imergir nas atividades potencialmente dispersantes do mundo — a questão já não é porque negá-las, mas quais as reais chances de renunciá-las. As atividades potencialmente dispersantes do mundo (do condicionamento dopaminérgico das redes sociais à esgarçada vida social noturna) são envolventes e significativas demais para um jovem como eu, fruto carnudo deste tempo destroçado e permissivo, simplesmente virar as costas por completo. O melhor trato, agora acredito, é imergir em doses, esforçando-se para ecoar toda a energia da vida na tal concentração de corpo e mente. Concentrado na linha do tempo do Instagram. Concentrado no sexo. Concentrado na noite.
§ Essa capacidade magnífica de, não importa o que aconteça, conseguir levar a vida adiante. Seja qual for o peso do fardo, qual morte carrega nos ombros: respirar e ser capaz de levar a vida adiante.
§ Compartilho da visão comum de bilionários (bitolados) e entusiastas (ingênuos) de que as inteligências artificiais poderão nos libertar do universo das atividades maçantes e corriqueiras, aquelas que nos exigem raciocínio (para saber o que cozinhar), memória (para preparar a lista de mercado), contato com nosso estado emocional (para escolher a música que queremos ouvir) e, sobretudo, musculatura (para lavar a louça, varrer a casa, limpar as prateleiras). Minha discordância não parte do prognóstico, mas do valor: antagonista dos entusiastas, antagonista dos bilionários (porque sou pobre), reacionário e contrariador dos milagres das novas tecnologias, não vejo nelas funções de liberdade, mas, quase sempre, de prisão. Estar isento do compromisso de preencher uma reles listinha de mercado não se trata de autonomia e ganho de tempo, mas inconsciência e letargia. As inteligências artificiais como aqueles pais superprotetores que, na melhor das intenções, privam o filho até mesmo de passar manteiga no pão e, assim, o torna apenas um total incapaz, sufocado e adoecido.
§ Por que não exaltar e encarnar alguns aspectos da vida dura, aqueles mais naturais e vívidos que forjaram e sempre acompanharam nossa espécie? Na rua íngreme, desço da bicicleta e começo a caminhar. As panturrilhas se esticam e ardem, os pulmões bombeiam, a respiração se intensifica. Sei que, neste mesmo pedaço de asfalto ascendente, senhoras trabalhadoras, incansáveis, vêm e vão todos os dias, os dedos das mãos a arder com o peso das sacolas. (E, agora, não quero entrar no mérito da pobreza e da desigualdade social.)
Um carro ou uma moto me lançariam no bálsamo da facilidade e do conforto e é estúpido negar seus benefícios. No entanto, um carro ou uma moto me arrancariam o valor do suor, me privariam desse pequeno exercício de dureza e esforço altamente pedagógico, que os desejos egoístas não querem ter por perto, mas que uma consciência sã sabe que não pode abrir mão.
Chego na parte plana, esbaforido, contente, energizado; mas também um pouco deprimido ao lembrar da aposta equivocada da nossa cultura: construir um modo de vida que, cego à sabedoria incutida nestes moderados sacrifícios físicos, projeta seu ideal de felicidade no mais tétrico sedentarismo e na realeza de uma comodismo que é, em si mesmo, depressão.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #54
Felipe Moreno