Desolação e dilaceramentos
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§ Em julho de 2017, recém completado 24 anos, durante três semanas, sofri de sucessivas crises de pânico. Mas crise de pânico é a denominação técnica e genérica sobre os dilacerantes episódios de agonia existencial que vivi. É comum, para a pessoa que experimenta sensações agudas de pânico, imergir no brutal e irracional medo de morrer. Talvez seja a sensação mais presente, o fio condutor desse estado de espírito aos frangalhos. Nos meus episódios, não tive medo da morte, mas pavor da loucura completa e irremediável. O pânico era enlouquecer junto com o universo, ser massacrado pela face daquele universo sem sentido, medonho e perverso que meus olhos captavam. Submergi e me mantive são. Os surtos desapareceram. Antes, tive que passar por um longo período de adaptação, de muita sensibilidade e suscetibilidade. Interrompi todo e qualquer uso de substância que altera meu estado de consciência, do álcool à maconha. Aprofundei as práticas meditativas. Apesar de tudo, aquelas experiências excruciantes foram o marco de um estado de consciência, um rito de passagem funesto que, após enfrentado, me recolocou em outro ponto frente à vida.
§ Só a dor é profunda; e o ponto de partida de toda busca espiritual é a angústia. A alegria é um afeto raso: exuberante, seu movimento parte da superfície para cima, da superfície para fora. Arejamento e deleite, festa sobre uma pele cicatrizada. A dor, mesmo que coletiva, é necessariamente interiorizada; ao contrário da alegria, seu movimento tende para dentro, e sua textura é a da aspereza. Interiorização e aspereza forjam o dilaceramento; e o dilaceramento purifica e ensina. Não há corpo e consciência que amadureçam sem o dilaceramento provocado pela dor, essa irretocável catalisadora de maturidades.
§ Calor intranscendente. Carne quente. Sesta no sofá da sala. Pensamentos sobre ir à praia. Zunido, mosquito, vaso de planta, folha seca de bananeira. Meus olhos no celular. Meus olhos no teto. Calor que atenua a vontade de trabalhar. Vontade de ser vagabundo. Sexo. Sonhei que beijava outra pessoa? Sonhei com meu pai morto. Meu pai, morto, morria esfaqueado por uma faca de cozinha, e quem o matava era minha mãe. Sonhei com os prédios da infância. Caminhava, no condomínio, ao lado do meu pai vivo. Eu apontava para janela do primeiro andar e lhe dizia: morávamos ali. Ele respondia: morei e logo sai, me separei da sua mãe. Barulho de descarga.
§ Um santo errático, um místico libidinoso, um canalha transfigurado pela luz da bondade.
§ Sem a consciência da supremacia do hábito, nos manteremos iludidos sobre ideias de liberdade, reféns de maus hábitos, uma vez que tudo é hábito.
§ Meu fatalismo não é total: ainda resta algo que tampouco é esperança. É apenas um esforço de humildade em saber que a história, às vezes ou sempre, nos surpreende.
§ Perambulo debaixo de um sol de trinta e três graus, muito asfalto, pouco mato, pouca gente; o céu azul, estridente, à minha frente. Perambulo e canto, em voz baixa, alguma canção triste. O sol abrasa testa, nuca, ombros, braços; suor sob a camiseta. Perambulo e meus lábios sibilam. Desolação. Nem grande nem real. Mas uma sutil e poética desolação. Quando somada à música, desolação é outra forma de oração.
§ Morrer em solidão — porque é a única maneira possível. Morrer em ternura — porque é exercício de poesia. Viver, durante toda a vida, em atenção — porque é a forma mais digna.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #51
Felipe Moreno
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