Da modernidade ao pós-tudo
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Modernidade
§ O maior projeto de civilização já concebido foi o da modernidade. E deu errado — o antropoceno é a prova assombrosa. A modernidade, afinal, cultivou a terra com muitos venenos, na intenção de controlar “as pragas” e gerar abundância. Por um lado, controlou “as pragas” e gerou abundância. Por outro, intoxicou o mundo e pôs em xeque a saúde da vida. De que adiantou tamanha empreitada? A Modernidade caminhou por um caminho teso e fulminante e se estabacou no meio-fio da grande esquina que o próprio mundo, esfera viva e consciente, ao sentir na pele nossas afrontas, se encarregou de criar.
§ A Terra foi expulsa pela história que os modernos inventaram. Perdura, há cinco séculos, a história contada por aqueles que decidiram, deliberada e estrategicamente, se desligar dos ciclos naturais, abolir a lei telúrica. Cabe a algumas pessoas, como seres da Terra, antes do que agentes da história, desfazer esse enorme mal-entendido, essa impostura terrível; cumprir uma missão simples: estar na Terra mais do que na história. (Não seria essa a postura de um verdadeiro materialista?) Ter um filho, nesta era, é ter o dever de transmiti-lo a percepção reversa à atual: a história da gente está submetida à vida do mundo.
§ O humanismo ocidental se agigantou no cosmos e sua sombra recaiu sobre o planeta, tapando o sol que produz toda a biodiversidade.
§ Precisamos inventar um materialismo verdadeiramente materialista, destituído, em primeiro lugar, do credo do progresso.
Pós-modernidade e transhumanismo
§ O que há de mais complicado em viver na era da derrocada da civilização moderna, numa atmosfera de ecocídio que esta própria era causou, não é ter que caminhar e reconstruir a partir dos escombros; mas ainda ter de enfrentar a prole mais viva da modernidade: os transhumanistas, esse secto poderosíssimo, movido, no fundo, a ressentimento, fúria e megalomania, designado a vencer a guerra que a modernidade inventou e, no fim, perdeu.
Convencidos de que, desta vez, vencerão as limitações da condição biológica, de que dominarão por completo o mundo natural, os transhumanistas, em caso de nova derrota, não devem deixar resquícios de realidade material, mundo em crise a ser reconstruído. Nenhum escombro restará: o altíssimo risco que sua filosofia impõe não permite restituição. Até lá, a ilusão da dualidade se aprofundará: o mundo biológico, na visão da própria vida, saberá que nos expurgou; o sapiens, um pós-humano, enquadrado no mundo intangível, estará convicto de que tudo transcendeu.
§ As atuais tecnologias são disruptivas, mas não suas filosofias. No entanto, parece equivocado dizer que tais tecnologias disruptivas abrigam, na sua essência, um vácuo sem teoria, sem ontologia, sem cosmovisão. O iluminismo não morreu; portanto, são os retalhos do pensamento iluminista que sustentam o paradigma tecnológico atual. Em suma, as tecnologias disruptivas não romperam com o contrato iluminista e fundaram uma nova ordem de percepção da vida; apenas hipertrofiaram o humanismo iluminista.
Há um senso e um cacoete transhumanista em todo tecnocrata de hoje, mesmo naqueles que não se consideram transhumanistas. E a própria filosofia transhumanista, cuja ambição maior é a condição pós-humana, parece ser, repito, a aberrante hipertrofia dos ideias humanistas tradicionais do Ocidente.
O humanismo ocidental, que inaugura a modernidade, é o filho destemido e impetuoso que comete o parricídio cósmico: o velho e correto diagnóstico da morte de deus. Fluindo nessa árvore genealógica, o transhumanismo reivindica ser o neto de um deus que morreu muito antes do seu nascimento — portanto não o influenciou em nada; e o filho que herdou o destemor e o ímpeto do pai, a fim, agora, não mais de matá-lo, de suceder os atos parricidas (essa seria a disrupção filosófica), porém de corrigi-lo e, em último instância, salvá-lo.
§ Embora o capitalismo de vigilância consiga invadir e se apropriar até das brechas mais sensíveis da vida cotidiana (e a internet das coisas seja uma arma ainda mais poderosa para romper fronteiras e praticar invasões em espaços inimagináveis), a casa, mais do que qualquer outra instância da vida comum, continua sendo um forte ponto de resistência e transformação subjetiva. Na guinada do capitalismo digital, cujo ativo principal é o extrativismo do intangível (desejos, pensamentos, sentimentos), o lar deve ser entendido como a guarnição das pessoas que resistem à ofensiva, e como espaço de criação e manutenção dos modos de vida comum que recusamos a abrir mão.
Pós-humano e pós-Terra
§ Distopia no horizonte: o pós-biológico (sexo biológico como construção social), que abre caminhos para o desenvolvimento do pós-humano (biotecnologia e afins), situado num pós-Terra (colonização de outros planetas). A era da espécie sintética. Até a era pós-sintética — utopia num horizonte além: voltamos à Terra, como primatas, sob a bruta contingência da natureza.
§ A grave bifurcação à vista, a rota que dividirá o que a biologia, em quatro bilhões de anos, não dividiu: viver e morrer na Terra, pela Terra, como todos os ancestrais, de todas as etnias e culturas, como todas as espécies, tudo que vive; ou sobreviver, na Terra ou em alhures, feito morto-vivo, ciborgue sinteticamente anestesiado, tunado, encarnado na missão científica de não mais sentir dor, não mais morrer, não mais ser criatura terrestre. De um lado, a velha e consolidada condição da existência humana na Terra — orgânica, limitada, interdependente. De outro, a inauguração da era pós-humana, num pós-Terra.
§ Pós-modernidade, pós-verdade, pós-humano. Qual posteridade poderá nos arrancar deste atoleiro viscoso, esta descarga de todas as relativizações, este estado sem chão, esta era do pós-tudo?
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Felipe Moreno
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