Crença, carnificina e não saber
Há sempre um perigo embutido na crença, seja ele o fundamentalismo, o comodismo ou a extrema subordinação. Com exceção do assassino em série, que tortura e aniquila pelo dom, é agarrado em alguma fé que damos a ordem ou consentimos com a execução em massa: o estupor do fiel é a sentença do inocente. O fundamentalismo, afinal, tem a forma de uma pedra ou uma bala que disparamos, com convicção sobre-humana, em prol de um reles signo que nossa consciência fantasiosa inventou, inflou e enrijeceu à proporção do cosmos: Deus, o Estado, a pátria, a moeda, a liberdade.
Se, desde os primórdios, deus fosse uma sensação, uma experiência da consciência, não uma ideia, não haveria tanto sangue impulsionando o curso da história. Nos apropriamos do medo primordial da escassez para legitimar nossas complexas teorias teológicas e políticas; quando se vê, estamos gerenciando a carnificina a serviço de um sonho ou de uma palavra sem verificação na natureza.
Nosso vício em sacralizar o tempo por vir (o inexistente) justifica o sacrifício do presente (a realidade): as fogueiras da Inquisição, as crianças nas minas de carvão, os campos de concentração nazistas e os expurgos soviéticos exerceram, cada um à sua maneira, a barbárie do agora como condição excepcional ao paraíso do amanhã. A brutalidade, o exercício de eliminação da diferença, oculta uma sanha irrefreável por uma pureza que perdemos ou devemos alcançar. Metafísicas reféns do tempo, em débito com o relógio. A prova de que o sonho, esse termo vulgar e romantizado, também pode ser anomalia. São as ideias e os sonhos que movem o mundo — e é essa a nossa grande tormenta.
Quando não nos esquenta e nos atiça, a fé, ao contrário, pode nos paralisar: a crença, como fim em si mesma, suga nosso senso de dever, afinal, acreditar é o passaporte para a aceitação celestial (no caso religioso) ou social (no caso político). Não importa o que você faz, importa o que você acredita: distorção de gente esotérica e indisposta. (Lembremos dos “católicos não praticantes”.)
Além do mais, ao crer recebemos o alvará de uma série de transgressões: aqui é onde mora o assassino passivo, morno demais para dar a ordem dos extermínios, mas com calor suficiente para consentir o horror. A fé como poltrona e escudo, muleta e amuleto: em vez de nos colocar em serviço, reconforta nosso ego e prostra nossas ações: porque supomos que deus, um narcisista, exige que apenas o enxerguemos e acreditemos nele.
Quem nasce e morre crente de qualquer coisa, sem nunca ter retirado do próprio âmago o objeto de fé, sem nunca ter trepidado na tábua da própria esperança, não confia, só aceita; não acredita, apenas rumina. É por ter vivido o outro lado da realidade que a pessoa que pensa e age fortifica sua conduta. Se não confrontado, constantemente, com o pessimismo, o otimismo é apenas um cacoete de desesperados. Há dúvidas fundamentais, titânicas, que, ao contrário de nos imobilizar, nos dilaceram para aumentar o espaço da razão e da ação.
A crença forjada no fogo gera o fundamentalista. A crença como linha de montagem produz o narcisista inútil. Sob esses aspectos, a crença é sempre um excesso ou uma insuficiência.
*
Uma mente que crê e um corpo abandonado: diagnóstico de um ocidente sedentário e uma mente hiperestimulada, inflada de projeções.
Inúmeras cosmovisões indígenas, em contraste, nunca conheceram a distinção entre pés que pisam o solo e sentidos que se comunicam com espíritos e deuses. Tradições religiosas e filosóficas do Oriente, como a yôga, o zen budismo e as artes marciais, a despeito das suas diferenças, encarnam um mesmo valor central: o saber é, antes de tudo, uma conduta corpórea. Aqui, a linguagem é funcional, está a serviço de simples e rígidos preceitos éticos, e mal resvalam o campo da superstição. A fusão entre consciência — que é tanto cérebro quanto panturrilha, neurônios e músculos, sinapses e sensações, postura e respiração — e experiência física da vida, fora do exercício da linguagem que se justifica em si mesma, é a chave e o caminho.
Aqui, por fim, existe a oportunidade de se livrar das armadilhas das crenças de linguagem, estes signos de esperança, e encontrar uma outra possibilidade de ação: um agir sábio, extrapolado da esfera da lógica, e que é puro paradoxo, portanto rico por natureza: um saber ativado a partir do não saber e forjado, fundamentalmente, em práticas que reintegram funções de corpo e mente, através do silêncio, da boca que cala, da imagem que some.
Atrair inscritos em niusleter é trabalho de garimpo, manual e orgânico. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique. Embora inicial, a experiência desses envios por e-mail tem sido uma das atividades de criação e interação mais empolgantes e alegres que já tive na internet.
Abraços e até a farfalhada #20,
Felipe Moreno
>>> Leia as niusleteres anteriores <<<
>>> Instagram: @frugalista <<<