Consciência do absurdo, neurose metafísica e o latejamento do nada
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§ Abro os olhos, madrugada ainda. Respiro e me ergo até a ponta da cama. Catatônico: por que a existência e não o nada? Sem deus, vivemos um acidente que aconteceu? Com deus, para quê a criação? Por que eu e não o nada? Por que eu e não o barro? Por que eu e não a planta? Açoitado: que tipo de sujeito é este que arrasta e resvala a consciência à beira do abismo-absurdo, às quatro da manhã? Água no rosto, aterrissagem: a inutilidade dessas perguntas primeiras e finais, sem cabimento para respostas lógicas, mas que latejam, irrompem, insistem…
§ De repente me dou conta de que as fotografias daquele místico indiano (seminu, de bengala, barba por fazer, corpo recostado na pedra, na grama, no chão de terra batida) têm intensa semelhança com a visão que tenho desse homem em situação de rua, nitidamente arrasado por algum transtorno mental, jogado no canteiro do posto de gasolina, silencioso, contemplativo. A velha constatação já vivida por alguns poetas e filósofos: há algo em comum entre o louco e o místico, o mendigo e o santo. Por caminhos contrários, cada qual no extremo da sua consciência, o místico indiano e o homem abandonado foram atravessados por um fulgor anormal: um figura a qualidade do todo, e o outro, do nada; ambos expressam o auge da simplicidade, auge da serenidade, numa presença tão estática que, no fundo, perturba aqueles que nunca puderam retumbar até alguma das extremidades.
§ Como é possível uma mente tão neurótica como a minha — voltada à obsessão e compulsão por tantos signos, ao ponto da exaustão pela repetição e do entupimento cognitivo — ainda assim estar tão aberta a essa quase mística de ver o encanto das coisas sutis e minúsculas? Uma condição poética a despeito da neurose ou, paradoxo absurdo, por causa, justamente, da neurose?
§ O estalo luminoso das minhas paisagens tão íntimas, ínfimas, cotidianas: pardais sem fim, em debandada, sincronia, de um poste a outro. Fascínio pelas paisagens, pelo cenário cru e o movimento irretocável da rotina simples, êxtase de pés firmes, em terra dura, sem misticismo. Delírio? Atravesso a avenida, na lentidão de quem tem a eternidade, na concentração de quem atravessa a última avenida do mundo, última da vida, nas imediações da morte — encharcado de vida. Bataille: “O erotismo é a afirmação da vida até na morte”. O estalo luminoso quando as extremidades se tocam: vida toca a morte, morte toca a vida: vida. Medo das paisagens terrenas: a quem me entrego, deus ou demiurgo, à luz pura manifestada em matéria ou à criação falsa, de um deus falso? Neurose dualista que não sai de mim. Até me lançar na paisagem, em força total, para lá das categorias, só olhos e paisagem; e o mundo sussurra: “Isto é tu, teu próprio deus!”.
§ Abandonar este fio de consciência na amplidão das coisas sem nome, sem nada, sem o deus dos outros, sobretudo. (Onde está o deus dos outros, meu coração não bate.) Repousar os sentidos. Novembro, o calor chegou: brasileiro antigo, vou me deitar na rede, descansar o corpo.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Abraços e até a farfalhada #89,
Felipe Moreno
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