Clarão e fragmentação (ou a intensidade da escrita em pedaços)
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Um fragmento tem de ser, igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho. — Friedrich Schlegel
O aforismo? Fogo sem chama. Compreende-se que ninguém queira se aquecer com ele. — Emil Cioran
Só cultivam o aforismo os que conheceram o medo no meio das palavras, esse medo de desmoronar com todas as palavras. — Emil Cioran
1. As frases vêm, na esteira de reflexões. Vêm em bando de cinco, seis. Algumas escapam, são varridas pelo vento, desfeitas: frases natimortas. Consigo transferir para o papel aquelas com sustância suficiente para pousar na mente: frases fortes e paridas, com luz e abrigo. Já não tenho histórias, discursos encadeados, longas dissertações. Apenas elãs, fulgores rente ao chão. Frases, fragmentos. Cada vez mais frases e fragmentos. Escrevo na forma do golpe ligeiro, que capta o movimento do entorno, aciona, retrai e deixa ecoar. O golpe ligeiro para quebrar o senso. Escrevo o que já nasce quebrado e que, como quebra, é inteiro. Escrevo o discurso que se rompe, discurso abrupto, a um só tempo fechado em si mesmo, aberto para o todo: escritor inteiro de quebras.
2. Aquele velho turrão, exagerado, meio bêbado, ainda me impacta, quase me convence, depois que disse algo mais ou menos assim: “Meu valor como leitor está na minha qualidade de curador exigente. Ou melhor, na minha qualidade de ser chato, chatíssimo, de não aceitar quase nada. O romance, quando se parece com romance, é um martírio. A poesia me entoja. Hoje, só me interessa essas prosas soltas, esses rascunhos escritos no porão. Essas prosas trituradas, esquisitas, que, quando escritas, tiveram todas as pretensões, menos a de ser literatura. Enquanto que, para mim, como leitor, é a melhor literatura”.
3. O aforismo não quer descrever, não quer relatar, não quer argumentar. Através do clarão ou do rasgo, da fulgura ou do corte, o aforismo quer chocar. Dependente do efeito do estrondo, o aforista mistura poesia e filosofia para brincar de produzir faísca, fogo, explosão — qual uma criança que, em festa junina, se diverte, vidrada, jogando estalinhos no piso.
4. O que me fascina e me intriga no fragmento, na escrita fragmentária — prosa paradoxal, porque acabada e inacabada, pedaços de textos flutuantes — é sua intransigência, seu deslocamento e descolamento violentos, sua aparição brusca e luminosa. Todo fragmento, seja ele um aforismo ou um relato curto, é um golpe ou um susto. O bom fragmento, o fragmento das entranhas, é uma tira literária de forte impulsão, mero raio de sentido circunstancial, peça docilmente agressiva que pula da página.
5. Não há argumentos, a retórica é rente ao chão. A crueza destes apontamentos, escrita que se descola o mínimo possível do ato. Um anotar na rua, ou lavando louça. Como estar na mata densa, alerta, sentidos amplificados e, no primeiro ruído, desembainhar, agilíssimo, a faca da cintura. Estar na vida e, na aparição do primeiro clarão, sacar caderno e lápis e registrar, ali mesmo, no meio-fio ou na cadeira dos Correios, na laje ou na areia fofa da praia, este pedaço de prosa crua, que não é esboço — é pedaço completo.
6. A escrita de ficção é, em geral, o exercício de algum artifício; criar enredos e personagens é, também, aprender a narrar numa ordem quase matemática, por mais não convencional que seja a estrutura. Abdicar dessa prática belíssima, rica, dependente das concatenações, é abrir caminho para lançar-se ao puro e somente exercício da crueza escrita, não ficcional, autobiográfica, esquartejada, às vezes estranha, intransigente. Sensação de relâmpago, forma de pedaço. O aspecto? O da aspereza e, ao mesmo tempo, da sutileza. Estes ensaios fragmentários, fechados na forma, abertos no sentido, constituem toda uma rusticidade e anarquismo que não convêm a todos.
7. A escrita de fragmentos é a arte da ênfase, melhor: a arte de uma ênfase lapidada. A ênfase no detalhe objetivo ou na divagação subjetiva. Mas ênfase, sempre. A escrita não enfática transcorre em romances tradicionais, longos ensaios, sistemas filosóficos e todo gênero que pressupõe cadeia, continuidade, lógica. Toda ênfase é um risco, a saber: o risco da presunção e do ridículo. Mas a ênfase fragmentária deve minar o risco ao se colocar crua e ensaística, despretensiosa da busca de qualquer grande verdade: deflagra apenas raios e relâmpagos, luminosidades, clarões violentos — a mera verdade daquele momento — apta a ser contrariada no fragmento seguinte. Essa contradição: é ênfase, cortante e dura, mas não é séria.
8. Este caminho intuído, elaborado e traçado: que do zazen, do karatê, da escrita de fragmentos e de haicais haja apenas a diferença de gênero; mas que essas práticas e expressões aflorem da mesma base, mesma natureza: atenção, captação do mundo pelos sentidos, ação, eco; máxima condensação de força e efeito a partir da concisão de matéria e movimento; silêncio, flecha, alvo; rigor, lapidação, refino da forma, para desembocar em algum ponto de vazio — o interstício entre uma inspiração e uma expiração; o instante infinitesimal entre a força desprendida em um golpe e o relaxamento; o branco da página entre um fragmento e outro.
9. Quem sabe eu possa explodir em um milhão de fragmentos escritos e, depois de tanto, silêncio.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #58
Felipe Moreno