Céu estrelado, pedra, gargalhada: três haibuns ao som de Elis e Tom Zé
▣ Punta del Diablo, Uruguai, maio de 2018. Estou com 24 anos, órfão de pai há cinco meses, resignado, mas ainda sem couraça. Com dois amigos viajantes, dia de semana em que nada temos a fazer, caminho na praia deserta, sob um céu opaco e uma temperatura de 22 graus. Trafego lento e descalço, a areia grossa massageando meus pés, e escuto música pelos fones. Inicia Mãe (mãe solteira), álbum Estudando o samba, Tom Zé. Letra enigmática, triste e arrebatadora: “Dorme, dorme, meu pecado, minha culpa, minha salvação”. Tomado pela letra e melodia que incita o choro, eu choro. Interrompo a caminhada, ajoelho na areia, levanto o rosto para o firmamento de luz fraca, estendo os braços em mesma direção. As lágrimas deslizam, encharcam meu rosto, a saliva engrossa. Um dos amigos vê a cena; depois tira sarro: “Que exagero, hein?”. Já me disse, várias vezes, que desconhece a sensação de enlevo provocada pela mistura de paisagem e música. Ele tem seus próprios métodos; eu tenho os meus, e sou grato por eles: através dos seus usos simples, me enlevo no ato e ainda ganho a recordação indestrutível.
passos sem pressa
aquela canção começa
íntima festa
▣ Depois do zazen, vou ao quintal: velha fórmula de gerar epifanias através de ato de me prostrar numa cadeira velha e olhar a paisagem. Minha paisagem, hoje, é o mar: agradeço o privilégio. Olho o céu: é noite, algumas nuvens cinzas divagam, há estrelas. Pratico o exercício do desapego, nem que seja por alguns segundos — afinal, depois que me levantar, a ideia ilusória de que coisas pertencem a mim recobrará, e terei a impressão de possuir até uma reles vassoura. Fecho os olhos e crio a imagem do cosmos, torrente sem fim que amedronta pela infinitude, encanta pela forma. Diante disso, o que são nossos pertences? Depois, recrio a imagem de mim mesmo, da vira-lata que está aos meus pés, do mosquito que pica meu braço: de fato, pensar a identidade, de maneira isolada, logo após conceber a imagem do universo, é ser massacrado por sua infinitude. Pensar o elo primordial — que, em essência, une a mim, a vira-lata e o mosquito —, além de mais reconfortante, conciliador com o todo, faz mais sentido. Embora o correto, no fim das contas, é até mesmo não pensar, não buscar qualquer sentido. Pudesse eu, por mais vezes, ser atravessado por aquilo que não tem a menor sombra de signo algum, mas apenas o estado puro da experiência.
espaço sem fim —
o infinito da noite
resvala em mim
▣ Sentando na pedra ainda morna de sol, em frente à praia, vento amigável. Nos fones de ouvido, a música embala o refrão — Elis Regina, Os argonautas. No mesmíssimo ato, duas gaivotas em sincronia, variando o planar entre o ar e as águas que refletem seus corpos brancos, esbeltos. E me vem a questão visceral, pungente, tão visceral e pungente que nasce com um advérbio — recurso que evito usar — e gera redundância: “Meu deus, por que tudo tão magnificamente belo?”. Começo a chorar. Seguida das lágrimas, a gargalhada. Choro e rio compulsivamente, feito alucinado — é assim que as pessoas que passam atrás de mim, na calçada, devem me ver: um alucinado que chora e ri ao mesmo tempo, sabe-se lá por qual razão. Não há razão. Há beleza. E graça. É o mais fundo que já pude chegar na vida.
na pedra, graça
vento, aves, navego, viver:
não é preciso
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Abraços e até a farfalhada #25,
Felipe Moreno