Às vésperas dos trinta
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1. Um bom caminho, caminho esperto, nesta era de positividade neurótica e cega idolatria a tudo que é jovem, é vislumbrar, com certa beleza, tudo que decai. Para mim, no entanto, ainda é fácil falar e propor: chegar aos trinta é apenas ter dez a mais que vinte, é ser moleque com um adicional de meses, um anexo de outros dias.
2. De qualquer forma, ter trinta é rigorosamente melhor do que ter vinte: o anexo, no fim, melhora as experiências, porque desembaça, mesmo que superficialmente, a lente frenética, tumultuada e egocentrada dos vinte. Estar com vinte, no geral, é ter muita pulsão e, ainda assim, fervilhar numa certa tristeza. Já os trinta, necessariamente, poda algumas agressões internas e mantêm um calor, mais estável, duradouro, com mais contentamento.
3. 2023, ano dos meus trinta, passou sobre mim, até agora, como trator, a me esmagar algumas vaidades veladas, a arrebentar contra o chão duro do mundo uma certa sensação ilusória de ser mais forte do que sou. Desfez algumas fibras e revolveu, feito betoneira (perdão pelas metáforas da construção civil; estive envolvido com obras nos últimos meses) algumas projeções que eu tinha sobre mim mesmo.
4. Para tudo, na vivência relacional, a idade é minha base e meu norte. Depois do nome, a primeira coisa que pergunto, para alguém que acabo de conhecer, é a idade. Centrado na questão etária, desconfio das pessoas que, supostamente, não dão relevância às diferenças de tempo de vida. Tempo de vida não é tudo, óbvio. Mas é, simplesmente, o campo onde tudo transcorre. Logo, tempo de vida é tudo — e as diferenças de idade, para qualquer cultura, serão sempre cruciais.
5. Em alguns rolês, já me percebo velho. Pois já são onze anos de diferença de quem tem dezenove. E quem tem dezenove já nasceu sem lembranças do penta da seleção e, mais assustador, ainda não existia quando os aviões colidiram com as torres do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. Não pode dizer se estava ou não assistindo Dragon Ball no momento do ataque, porque ainda habitava o seio do nada. E pasme: já tem 18 anos quem nasceu em 2005.
6. Já me percebo curtindo mais e melhor o rolê 30+. Um rolê curtido, mais sereno, elegante, como um samba bom. E uma estranhíssima impressão: o jovem, individualmente, é o que emana a fase de maior beleza da nossa espécie. Mas o jovem em bando, com suas vestimentas e ansiedades, seus gostos e trejeitos, torna-se mais feio do que um grupo de adultos, com suas primeiras rugas e cabelos brancos, que se encontra para conversar, sentar em cadeiras confortáveis, tomar vinho, não exagerar em nada, nem nas substâncias nem no horário do fim da festa.
7. Capitalismo tardio e a juventude estendida de forma perigosa: meu avô, aos trinta anos, trabalhador de classe média no final dos anos cinquenta, início dos sessenta, já tinha os quatro filhos que proveu ao mundo, trabalho fixo e casa própria. Sua vida, monótona e restrita, engaiolada e previsível, porém estável e ascendente, sólida e segura, já estava desenhada até seu ponto de partida, aos 61. O mundo ainda não despencava com tanto alarde e agressividade.
8. A liquidez corrosiva do século 21 neoliberal: aos trinta, nem eu nem meus amigos ao final dos vinte, ou avançado nos trinta, têm as garantias materiais dos nossos avôs — sem filhos, sem plano de carreira, vivendo de aluguel. Mas com boas roupas de brechó, sabendo escolher bons vinhos e, quando muito, conseguindo viajar uma vez ao ano. De um ponto de vista trágico, somos como manequins ocos, modelos de um book que não nos pagam pelo uso de imagem, personagens bem vestidas a bailar nos destroços da cultura, preocupados em não sujar nossos sapatos.
9. Aos vinte eu alimentava uma imagem exagerada dos meus trinta: muito mais rico e maduro do que sou hoje. Esse fato, porém, não é a prova de um fracasso, mas o próprio encerramento de uma ilusão adolescente: aos vinte, somos sempre arrogantes e extravagantes com nosso futuro, seja na convicção de que estaremos ricos ou que morreremos ainda jovens, feito mártires.
10. Aos trinta, projeto meus quarenta de forma mais modesta e, menos rico de grana, me sinto mais rico de paz de espírito. Para ganhar um mínimo da riqueza da paz de espírito, tive que abrir mão da corrida em busca da riqueza material. Por via das dúvidas, escolho a simplicidade, porque esta tem a sabedoria que a extravagância não tem.
11. Só o muito jovem, numa secreta tentação fatalista e mórbida, narcisista do próprio fim, vislumbra morrer jovem. Passado o ápice da juventude, damos um passo a trás e, prudentes, começamos a traçar a linha imaginária da longevidade.
12. Trinta: já não tão novo, muito longe de ser velho. Um desatar mais nítido da infância, um aceno tímido aos trajetos da vida adulta, um horizonte opaco, porque muito à frente, da velhice. Mas se eu chegar aos sessenta, devo pensar: aos trinta eu ainda era menino.
13. Sessenta, setenta: talvez nesses picos teremos atravessado os desertos da idade e, das tantas repetições vividas, ter uma base sólida, um olhar mais arguto (ainda que opaco, limitado). Pequenas premonições, um lastro de traquejo.
14. Vou ao karatê, três vezes por semana, para treinar, basicamente, os mesmíssimos golpes e movimentos. Disseram que é assim para quem pratica a vida inteira: a vida inteira, em treino, a repetir os mesmos golpes e movimentos. Metáfora da vida? Existir, com boa consciência, bem-estar e bons valores, é repetir as mesmas ações, mesmos gestos. Refinar o hábito.
15. A novidade, o ineditismo, por si só, não constam profundidade, senão excitação. Mas o que realmente excita a vida, a longo prazo, é o traquejo que se cria à base da monótona, para os infelizes, ou instigante, para os alegres, repetição das coisas. Toda experiência, individual ou coletiva, para o que quer que seja, é o simples encadeamento de incontáveis repetições de uma mesma coisa.
16. O ser humano, primata menos moldado previamente, quer dizer, mais oco e, principalmente, mais lento do que os outros, necessita da deliberação consciente do hábito, do traquejo que só a repetição incontável possibilita. Nossa espécie se forja, com potência, alegria e maturidade, através de uma certa monotonia, de um exigente, lento, delicado e melancólico apurar das mesmas coisas. Uma mínima liturgia, seja qual for, contanto que conservada, é sempre uma virtude. O espaço para a forja da nossa boa condição é o próprio tempo. E é aqui, portanto, que o envelhecer tem todas as vantagens que a pouca vida não tem.
17. Alastrar o cotidiano. Manter-se fiel a ele, concentrado, até que ele se interrompa. E isto é tudo.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #53
Felipe Moreno
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